Monday 24 December 2007

A cidade onde nasci

Baixa do Porto, Dezembro de 2007. Fotografia de Mariana Gelabert.

Estava na sala de jantar, na lareira crepitavam alguns troncos pequenos num leito de labaredas alaranjadas. A mesa estava já preparada, com a toalha de linho bordado, o serviço antigo de louça de Viana e os copos de cristal. Não se ouvia o som da televisão nem os rugidos dos automóveis na rua, apenas os ruídos dos últimos preparativos na cozinha. Nas paredes e nos passepartout espalhados pela sala vigiavam-me as caras de antepassados e de nós mesmos nos anos da infância ou início da juventude. No andar de cima ouvia-se uma porta a fechar, e passos lentos e abafados no tapete do corredor. O aroma da madeira que ardia e o som das fagulhas que iam rebentando nos troncos davam um tom nostálgico a tudo, acentuavam o ar démodé daquela sala e anunciavam promessas de melancolia. Trazia-me de volta à realidade o odor dos filetes de polvo que chegava da cozinha, polvo galego que era sempre tenro e macio. Os passos no corredor eram da minha avó, ouvia já o roçar do seu vestido nos degraus da escada, vinha acompanhada pela minha tia, que lhe cochichava qualquer coisa baixinho. Em breve terminaria o silêncio da noite de Natal e os risos soltar-se-iam, misturando-se com as lembranças de outras noites como aquela.

Agora, tudo não passa de lembranças felizes. Apenas o silêncio se mantém, como se houvesse algum secreto apelo ao recolhimento e à reunião íntima. O tempo dos outros Natais parece tão distante, a família, as sobremesas abundantes servidas tarde, o nervosismo que antecedia a abertura dos presentes. Esta noite aproximei-me da janela e afastei as cortinas para ver o céu, o céu negro da cidade do Porto. E fiquei sem palavras porque no alto, entre o frio e a quietude, brilhavam as estrelas. Brilhavam e a mim parecia que iluminavam todo o horizonte, tudo o que tinha ficado para trás da linha desse horizonte e tudo o viria ainda. Fiquei mais uns momentos a observar aquele céu, e pareceu-me ouvir a voz suave do Chet Baker cantar “and I remember too a distant bell / and stars that fell / like rain / out of the blue”. Era belíssima a visão da abóbada celeste, o sítio de onde saíram os meus primeiros sonhos, o céu negro da cidade onde nasci.

Monday 17 December 2007

No Natal todos voltamos a algum sítio

Ferro de engomar. Barcelona. Fotografia de A.C.

Acabei de passar a roupa a ferro e fui fumar um cigarro à varanda, iluminado pelas luzes de Natal do quarteirão. O ar frio e límpido da noite aliviou-me de imediato e fez-me sentir relaxado. Só quando voltei a entrar reparei como se impunha na sala, no corredor, sobrepondo-se inclusivé ao cheiro do tabaco. O odor a roupa acabada de passar a ferro. Parei na penumbra e respirei fundo e dei por mim a sorrir sozinho, como adorava o odor da roupa acabada de passar, desde sempre. E as recordações jorraram vívidas, aquele aroma, a sensação de tocar a roupa quente e engomada, o som do vapor e dos esguichos de água. Olhei os lençóis que tinha deixado na cozinha, peguei neles suavemente e recordei. Tinha contado isto apenas a uma pessoa, em toda a minha vida.

Quando eu era criança, uma das muitas empregadas domésticas da minha mãe fascinava-me terrivelmente. Deve ter sido na altura em que comecei a entender o conceito de empregada doméstica. Ela passava a ferro num quartinho antigo e pequeno da casa onde vivíamos então, eu teria uns cinco anos e ficava pasmado a vê-la naquele labor. Chamava-se Carmen, era a dona Carmen, uma senhora à moda antiga do Porto, forte e cheia de boa disposição. Eu via o ferro a deitar fumo, deslizando sobre a roupa que ela estendia na tábua antiga, e ficava intrigadíssimo a pensar porque pagaria a minha mãe a uma senhora de idade para ir lá a casa queimar a nossa roupa. Dia após dia ia espiá-la, a ver quando é que ela incendiava tudo finalmente, mas em vez de labaredas e cinzas ficavam apenas montes de roupa ordenada e cheirosa.

Ficava meio escondido a vê-la passar a ferro, deitado sobre um grande sofá com almofadas antigas de cetim azul lavanda, e às vezes estremecia quando o ferro assobiava com algum jacto de vapor mais forte. Ela apercebia-se porque me olhava pelo canto do olho e ria-se muito, um riso sincero e bonito como as coisas antigas. Tinha sempre o rádio ligado numa daquelas estações de música fora de moda, e cantava as canções que iam passando. Às vezes eu adormecia no sofá, a curiosidade de espiá-la vencida pelo sono maravilhoso da infância. E ficava ali, embalado em sonhos que já não recordo, entre as músicas antigas e o cheiro do vapor do ferro.

Pousei os lençóis perto do armário para quando arrefecessem os arrumar. O silêncio enchia aquela casa, e sentia-me cansado e sonolento, embora soubesse bem que não teria mais aquela paz do sono da meninice. Nem o riso forte da dona Carmen, nem as músicas antigas e românticas, nem a magia de não saber como eram as coisas fora daquele mundo tão pequeno onde era tão feliz. Apenas o odor da roupa acabada de passar permanecia no ar, mais de um quarto de século depois, noutro país, como um cordão umbilical do passado. Muitas vezes, nas horas sem sonhos, lembro-me daquele menino que imaginava a empregada a queimar a roupa com um ferro e a ser paga para isso, e espero sinceramente não ser hoje uma desilusão para ele.

Saturday 1 December 2007

I want a little sugar in my bowl

Luar na varanda. Barcelona. Fotografia de K.

Enches-me como sangue numa ferida recente, percorres-me como a gota escarlate que flui desse escuro caminho. Estendes-te como a noite na cidade tingida de sombras, brotas como as flores no jardim que se vê da varanda aberta. Apagas com mãos mágicas a solidão da perda e dos anos que se foram, iludes com o teu sorriso o desvanecer dos sonhos e a dor de saber demasiado. Apenas um reflexo ténue do candeeiro do hall da entrada chega aqui, o resto é prata do luar que cai em cascatas. Danças suavemente em frente à aparelhagem quando a música começa a sair aveludadamente das colunas, imitando o menear arrastado da saudosa Nina Simone.

I want a little sugar in my bowl / I want a little sweetness down in my soul

Pareces alheia à ilusão da realidade, inacessível ao engano da importância dos pormenores. Agora, no fundo do meu ser, comovido, não contenho nem um vocábulo, nem me envenenam as horas idas. Deixo-me simplesmente enredar no no vasto espaço do teu abraço, arder no derradeiro incêndio dos nossos corações. A alvura da lua faz-me ver tudo como num efeito negativo, o que era luz agora são sombras, o que estava escuro agora parece-me tão claro. Jogas o teu jogo, sentes a tua luz. Eu apenas me deixo conduzir a esse final, sem memória, sem perguntas. Tudo se desvanece.

What’s the matter daddy? Come on, salve my soul / I need some sugar in my bowl

Saturday 17 November 2007

Um luar espelhado

Fotografia de Dana.

Observava aquela rapariga há algum tempo. O jantar havia chegado ao fim e as pessoas já terminavam os seus digestivos, a orquestra tocava e havia pares a rodopiar na pista de dança. O formalismo do evento e os discursos tinham ficado para trás, e os antes cerimoniosos convidados riam sem parcimónia e giravam em passos arrojados, flutuando quiçá nos eflúvios etílicos do Ribera del Duero. Conhecia vagamente a rapariga, chamava-se Rosario e tinha-me sido apresentada numa outra festa ou evento. Era filha de um conhecido advogado, teria pouco mais de vinte anos, reservada e bonita, com um rosto impassível e geométrico. Levantou-se, aceitando o convite que um homem jovem lhe tinha dirigido para dançar, entregou a carteira a uma das colegas que a acompanhavam e sorriu nervosa. Caminharam até à pista, ela protegida pelo jogo de luzes que se alternavam no seu sóbrio vestido, ele com a confiança a bailar-lhe no sorriso quando a envolveu nos seus braços e começaram a girar abraçados. A orquestra tocava Calle Cabildo, de Edmundo Rivero, a pista estava muito composta e observei-os a dançar agarrados, aproveitando o momento para falar baixinho, intimamente como só numa dança é possível. Ao meu lado a minha atenta companhia olhava-os também e pousou a sua mão sobre a minha, os gestos podem muitas vezes ser mais expressivos do que as palavras. As costas da rapariga apoiavam-se na mão direita do seu par, a música invadia com passadas de veludo o recinto, e uma lua de espelhos girava no ar, emprestando a tudo a aura de um baile antigo. A luz ia escurecendo, os corpos encostavam-se e a orquestra avançava para outro tango, um claro desafio à expressividade dos movimentos, aceite até por aqueles que bebiam a noite envoltos numa cortina de fumo de tabaco. Da varanda, por entre o jogo de luzes, avistei a Rosario, parecia desenhar arco-íris com os seus sapatos na pista de dança, expectante sob os piropos daquela falsa lua. Num gesto de elegância hesitou, mas não virou a cara, e beijou também, fingindo saber enquanto aprendia. E a música mudava, e lá fora o fulgor de outra lua espalhava-se sobre a noite, e também eu era cingido por um abraço e havia um perfume novo no jardim.

Saturday 27 October 2007

A casa dos caracóis

La casa de los caracoles. Fotografia de K.


A Claudia afasta uma madeixa rebelde do seu cabelo castanho e acende outro cigarro. Um sorriso vitorioso assoma ao seu rosto moreno, e eu não reprimo a minha réplica da felicidade que sabia um dia iria ser realidade. As lágrimas, enfim, tornaram-se sorriso. A humildade, enfim, deu lugar ao orgulho. A tão sonhada legalização como cidadã espanhola e um contrato de trabalho decente rasgam os céus plúmbeos para a entrada em dias mais azuis. Brindamos com as nossas garrafas de cerveja e falamos dos planos para esse futuro do qual durante tanto tempo a Claudia duvidou que chegasse.
- Eu sempre tive a certeza disto, Claudia, era uma questão de acreditares e perseverar.
- Não diga isso não, que eu estava já duvidando, desesperando, tanto passei...
- Conheces a história da casa dos caracóis?
- Casa dos caracóis?? Não! Que é que isso tem a ver comigo?


Conta a lenda, ou pelo menos ouvi-o num bar antigo, que no final do século XIX chegou a Barcelona um lavrador do interior de Espanha disposto a procurar uma vida melhor. Conseguiu um trabalho, duro e com um salário paupérrimo, com o qual mal conseguia manter-se. Como não cobrava o suficiente para pagar uma renda, habitava uma passagem entre dois edifícios que estavam em construção, perto da zona que é hoje Hostafrancs. No Inverno passava fome e frio, e como enviava quase todo o seu parco salário à família, sobrevivia cozinhando ervas e apanhando o que podia do lixo, e comendo caracóis. Numa noite glacial, desesperado, nem um caracol encontrava para levar à boca e resolveu escavar na terra em busca de raízes de plantas ou algo. Ao fim de pouco tempo a revolver a terra bateu em algo duro, e não eram raízes de nenhuma árvore, mas sim um cofre com moedas de ouro. Como a fortuna lhe sorriu, comprou os dois edifícios que estavam a ser construídos, entre a passagem onde tinha vivido como um vagabundo. Em memória do que tinha passado, e para agradecer aos caracóis que tantas vezes o tinham salvado na miséria, mandou esculpir como adorno das enormes varandas das fachadas dois gigantescos caracóis. Trouxe toda a sua família para Barcelona e os edifícios ainda existem nesse mesmo sítio, com os dois caracóis enormes nas varandas, como que afirmando ainda hoje: podes começar do nada e, sem te dares conta, chegar ao cimo.

- É bonito... Pena eu não ter moedas de ouro não...
- As moedas de ouro são um pormenor. O que conta na lenda não é como a fortuna sorriu ao vagabundo. O que importa mesmo é o que ele fez da sua sorte quando ela lhe sorriu.

Saturday 20 October 2007

A noite tinha caído

Parc de la Ciutadella. Fotografia de K. Tratamento de A.C.


A noite tinha caído e eu passeava nas cercanias do parque junto ao mar. Na escuridão não estava realmente escuro por completo, das janelas iluminadas dos prédios longínquos vinha um pálido resplendor. Caminhava sobre a relva, sentindo os sapatos afundarem-se um pouco naquele verde escuro, e enquanto pensava em tantas coisas dirigia o olhar para o alto, para ver se o céu estava sereno. Recordações dos que já partiram para sempre vieram ter comigo. Tantas vezes sonhei com essas ausências, e lembro-me de perguntar no silêncio da noite: dormes? Eu acordava e ficava quieto, sentado na cama, sozinho no escuro, mas ninguém nunca respondia. Dormiriam, mas longe, muito longe de mim, debaixo da terra escura de outro país e talvez com os anos já ninguém se lembrasse deles, nem ninguém lhes levasse flores. Lembrava-me de dizer os seus nomes em voz alta, de chamar por eles, Daniela, Marta, João, Filipe, Isabel, Nuno, de chamar pelos que cresceram comigo, pelos que conheci quando era criança, pelos que dançaram comigo. Mas ninguém respondia. Nenhum dos que comigo partilharam verdades, dos que comigo descobriram o mundo, a música e os livros, o amor e as coisas mais belas. Nessa noite quis também chamá-los outra vez, gritar os seus nomes e romper a espessa cortina de breu que me apertava, mas apenas um fio de voz saía da minha garganta. Ao longe parecia ouvir-se uma voz que respondia num sussurro, mas talvez fosse só um qualquer som nocturno, o rumor do mar ou a brisa nas árvores do parque. Talvez fosse assim, mas continuo a chamar os seus nomes. Nos momentos em que vem até mim a memória dos amigos, os pedaços da minha vida que me foram cruelmente arrancados, nesses momentos em que tantas coisas dolorosas se agitam dentro de mim e eu fico assim, desamparado na vida como uma criança assustada, chamo os seus nomes. Nunca ninguém responde, mas ainda assim eu lembro-me deles.

Tuesday 9 October 2007

4 Gats

Els Quatre Gats. Fotografia de K.

Eu, o Julian, o Andrés e o Joaquín trabalhámos juntos em Madrid, há anos atrás, quando andávamos todos pelos vinte e cinco anos. A semana passada reencontrámo-nos os quatro, após anos de aventuras separadas, no Els Quatre Gats, no Bairro Gótico de Barcelona. Comemos bem, mas o mais importante foi o riso, os risos que não riam juntos há tanto tempo. Todas as épocas da vida vêm e vão, agora não parecia ter sido há tanto tempo aquele Fevereiro de 2001 em que formámos uma equipa fora de série. Mais cabelos brancos, mais responsabilidades, cada um tentando descobrir no outro vestígios da alegria das vidas que partilhávamos. No restaurante pairava aquele misticismo outonal de Barcelona, sublinhado pelos traços neo-góticos daquele edifício do final do século XIX. Entre as garrafas de vinho foram surgindo os laços que um dia nos uniram para sempre, foi nascendo a magia do reencontro, aquela cálida sensação de voltar a casa, ainda que a casa sejam três estarolas madrilenos.

Em 1894 um empregado de mesa do Le Chat Noir de Paris regressa a Barcelona com a ilusão de abrir um sítio semelhante, uma taberna onde se pudesse comer e beber barato. Dizem que baptizou o local como Els Quatre Gats porque naquela zona não passava ninguém, e pensou “aqui com sorte vão entrar quatro gatos”. Éramos nós, ali naquela mesa do canto. Quatro gatos com cinco garrafas de vinho, lambendo recordações nas vielas do passado e miando de felicidade por poder fazê-lo.

O Els Quatre Gats durou apenas meia dúzia de anos no virar do século, anos de esplendor ligados à boémia, à cultura e à mais vanguardista arte. Depois esteve fechado muito anos e quando abriu tentaram conservar o mesmo ambiente de fim de século e manter a essência do que representou a excelência da alma dos personagens que lhe deram vida. Naquela noite certamente não se aproximou disso, mas reinou ali um ambiente de cúmplice e tranquila festa, confirmado inclusivé pelos traços de bonomia nos sorrisos dos camareros. Não sei se foi na delícia do vinho que o vi, ou talvez nos três sorrisos diante de mim, mas a amizade era um milagre compartido, aqueles quatro gatos cantavam e tocavam com os talheres e os copos, celebrando o seu reencontro, bendizendo o seu acto, como que miando: que eflúvio de alegria nos permitimos.

Saturday 6 October 2007

Despedida em Agosto

S. Pedro de Moel. Fotografia de S.M.

A praia secreta estava escondida para lá do farol, e a descida era íngreme e demorada. O mar parecia maior do que o normal, talvez porque daquela perspectiva o mundo parecia suspenso entre o areal e o céu. A cor do mar era um azul incandescente e o vento trazia o odor da rama dos pinheiros até nós. Um bando de gaivotas passava ao longe, e os seus gritos ecoaram naquele espaço que parecia uma catedral de rocha, mar e luz. A água era cristalina e na maré baixa via-se cada grão de areia dourada sob a sua superfície. O cheiro a maresia era intenso, uma brisa com sabor a sal percorria a costa e ouvi as palavras que fugiam da boca da Isabel, acompanhando o seu olhar perdido no horizonte: este é o meu lugar favorito no mundo.
Tínhamos dezassete anos e desde sempre fazíamos férias em S. Pedro de Moel. Olhei para ela, reflectia toda a beleza e alva esperança daquele dia. Levava um vestido branco e leve sobre o bikini, que o vento moldava ao seu corpo. O cabelo cor de feno ondulava ao vento e os seus olhos castanhos com matizes de mel pousaram sobre os meus antes de me sorrir. A Isabel tinha o sorriso mais bonito do mundo. Fizemos o picnic sem mais companhia na praia, nadámos com braçadas enérgicas na água gelada e dourámo-nos sob o sol quente daquela praia silenciosa, que parecia jurar-nos que nunca revelaria a ninguém o segredo daquele dia.

O ocaso anunciava a hora de regressar a nossas casas, e perguntei à Isabel quantos dias assim nos reservaria a vida. Uma tristeza bailou nos seus olhos cálidos, uma premonição ou uma certeza que a juventude não me permitiu detectar. Os nossos passos pareciam não deixar pegadas na areia, mas sim rastos de esquecimento, como se fossem um modo de dizer silencioso. Caminhávamos abraçados, e cada coisa parecia saída da eternidade, o futuro era tão grande como uma data remota. Não esqueças nunca este dia.

Aquela praia da minha juventude já não existe. A erosão da costa nos últimos quinze anos e algumas derrocadas transformaram-na num reduto inacessível, o areal e a luz desapareceram para sempre e agora vivem apenas na recordação de quem ali passou. Há muitos anos que não vou lá, como se temesse que o regresso àquele sítio fizesse evaporar definitivamente a minha juventude. Quando me despedi da Isabel naquele Agosto não sabia que seria para sempre. Aos dezassete anos há notícias que não se esperam, e à medida que fui crescendo sempre voltei àquele dia na praia para afastar as sombras do passado. Não esqueço nunca aquele dia. A minha memória é também a da Isabel, e estas palavras testemunhos da luz que invadia as nossas vidas. Não sei se serão fieis ao que vivemos ou apenas ecos da saudade, porque as certezas partiram todas contigo, Isabel.


Texto escrito para e publicado originalmente no Sem Pénis Nem Inveja

Saturday 29 September 2007

Um

Bar Marsella, Barcelona. Fotografia de K.


Na rua, a brisa vinha suave de leste. O odor era pestilento, o habitual naquele cruzamento da Calle Robadors com a Sant Pau e as vozes das putas, dealers e chulos de terceira categoria passavam como uma revoada por nós. Abraçei a Dana com mais força e senti o aroma inconfundível do absinto desprender-se dos nossos lábios. Conseguia detectar, no meio de toda a vileza daquela rua, o cheiro do Outono, o cheiro de um Outono incendiado, que ardia também no meu coração. Senti umas mãos suaves, uma presença, um corpo que se cingia ao meu, o suave roçar daqueles cabelos negros, muito curtos, e do piercing metálico na minha pele. Um corpo que me dizia que já tinha chegado o Outono, e fazia nascer em mim as formas embriagadas dos sonhos, dos desejos e da temperança. Éramos um só corpo, com olhos verdes e azuis, mediterrânico e nórdico, homem e mulher, éramos violinos intocados que esperavam o Outono para soltar a sua música, éramos ossos e carne, éramos vértebras delicadas e sombras esguias, éramos lábios que buscavam lábios, mãos que sonhavam abraços. Ali, naquela ruela das putas, do absinto, dos pobres, dos marginais, dos órfãos de Gaudí, senti a amena felicidade das tardes ocres que passavam, havia algo que talvez nunca chegasse a saber o que era no ar, algo que caía do céu e parecia tocar apenas os nossos corpos.