Saturday 27 December 2008

Oito anos

Porto, Dezembro de 2008. Fotografia de K.


Noite fria, muito fria. Não se via ninguém nas ruas desertas, às nove da noite. Mas nós estaríamos juntos outra vez, depois de tantos anos. As saudades, as conversas antigas e as que mantivémos tantos anos por Skype ou no Messenger ou por telefone. As descobertas que fomos fazendo, as aventuras separadas, os sonhos que sonhámos e vivemos, longe uns dos outros, as fotos que fomos enviando para que nunca nos esquecêssemos que algum dia voltaríamos a estar todos juntos. Mais velhos, com filhos, casados, não importava… Cada um vindo do sítio onde decidiu viver, ou onde o destino acabou por nos levar. O Pedro que veio do Malawi, o Gui de Tóquio, o Nuno de Nova York, a Patrícia e o Pedro de Madrid, o Filipe de Auckland, a Helena de Singapura, a Joana de Budapeste, o André de São Paulo, a Cláudia de Londres, o João de Tunes, a Susana e o Filipe de Hong Kong, a Marta de Macau e eu de Barcelona. Há oito anos que não estávamos todos juntos, mas nunca nos perdemos no tempo. Nunca fizémos promessas, nunca dissémos adeus, sabíamos que por mais afastados que estivéssemos, o que nos unia era mais do que o respeito, a saudade, a amizade. Era o espírito da aventura com que sempre enfrentámos a vida, olhámos o futuro de frente e agarrámos as rédeas da aventura. Não deixámos a vida passar em branco. A felicidade explodia nos nossos sorrisos e os abraços faziam a vez das palavras que não saíam, e o frio desaparecia entre nós.

Monday 22 December 2008

Silent Nights

Rua de Santa Catarina, Porto. Dezembro de 2008. Fotografia de Mariana Gelabert.


Sente-se o Natal nas ruas do Porto. Caminho sozinho pela Baixa, absorvendo os odores, cores e sons típicos. As castanhas assadas vendidas na rua, as luzes que brilham entre as casas antigas das ruas que sempre conheci, as expressões características desta cidade nortenha. Percorro as rotas que antes fazia tantas vezes e agora são apenas passeios como os de qualquer turista, procuro as pessoas que antes eram conhecidas nos cafés, nos bares e nas lojas, mas que já não encontro. Ou porque esses sítios já não existem, ou porque as pessoas já não estão vivas ou foram elas também procurar a sua sorte noutros sítios. Lembro-me de um homem magro, de óculos grossos e com uma perna defeituosa que trabalhava no antigo Café Imperial da Avenida dos Aliados e que há cinco anos encontrei na Baixa a pedir esmola, inválido, idoso e sem ninguém. Não o encontrei mais, por muito que observasse as pessoas que pediam na rua, por muito que perguntasse por ele em cafés, quiosques ou aos engraxadores de sapatos que ainda recordava. Também já não encontrei alguns familiares e conhecidos, cuja ausência eu já conhecia mas é mais real, muito mais real nesta altura do ano. Tudo isto me vem à memória ao caminhar nestas ruas, tal o poema de Natal do Vinicius de Morais que me deu a conhecer alguém há já muitos anos: “Para isso fomos feitos / Para lembrar e ser lembrados / Para chorar e fazer chorar / Para enterrar os nossos mortos”. Digo estas palavras enquanto ando de mãos nos bolsos mas sorrio ao recordar os rostos que conheci estes últimos dias, as caras dos bebés e das crianças que já preenchem os nossos jantares de Natal, os filhos dos amigos que vieram alegrar as nossas vidas e preencher os espaços vazios dos que já não estão. Também para isto fomos feitos, “Para a esperança no milagre / Para a participação da poesia”. Sim, sente-se o Natal nas ruas do Porto, nas vozes e nos silêncios, nas luzes e na escuridão.

Tuesday 16 December 2008

Me fui en un día de lluvia

Bairro de Sants, Barcelona. Dezembro de 2008. Fotografia de K.

O temporal abate-se sobre Barcelona, a tarde é escura e a luz que resta é apenas a que a espaços surge da fúria dos relâmpagos. Com o entardecer, pouco a pouco, a chuva transforma-se em noite. Penso em ti, mas não estou contigo. Penso em ti e estou com outra pessoa, mas na minha mente és tu quem aparece, saída da prateada chuva vespertina, e sinto-te tão perto que consigo cheirar o teu perfume. De quem é o corpo que toco? De quem é a respiração que ouço tão perto do meu ouvido? E este corpo procura-me, fala-me, pede-me que o tome e esqueça tudo o que está fora desta sala, que deixe que o passado caia no esquecimento de um beijo. E então compreendo que a distância é um conceito que não é comprensível para mim. Sinto-te tão perto e estás tão longe, tenho-a aqui e sinto-a a mil milhas de mim. A vida expande-se silenciosamente para além das grandes janelas molhadas, e as leis da física não são mais do que enunciados teóricos diluídos nas gotas destas janelas. Gotas que passeiam a grande velocidade nos vidros, e desagregam em tons e formas o sorriso que vejo à minha frente e os braços que me cingem para criar o som de outro riso e a luz de outro olhar. Observo o semblante primoroso que tenho diante de mim, e ouço as palavras entrecortadas que me sussurra, hoje só há duas coisas no mundo para mim, tu e a chuva. Não respondo e fecho os olhos, porque não sei mais o que fazer ou dizer. A chuva impetuosa cai cada vez mais forte, como se acometesse por todas as partes, anulando todas as distâncias, e imagino os nossos corações tocando-se, nós dois sob um chapéu de chuva que mal nos protege da intempérie, saltando as poças de água na Praça Camões. Saio para a rua e penso que só a chuva pode levar consigo o que trouxe, e só me resta esperar por dias de sol em que saiba aproveitar o que tenho ao alcance das minhas mãos. As luzes dos candeeiros já se acendem e caminho sob a chuva crepuscular, cai a noite e apesar da escuridão e do frio este é para mim um doce entardecer, pois transformou-se na perfeição da tua lembrança.

Wednesday 10 December 2008

As ruas da cidade

Calle Santa Rosa, Gràcia, Barcelona. Dezembro de 2008. Fotografia de K.

Nos recantos mais escuros de cada alma, nas esquinas mais clandestinas de cada rua, onde alguém espera o céu, onde já ninguém espera nada. No sal de uma lágrima, num latido longínquo ao entardecer, na neblina da madrugada. Sempre marca a sua presença, discreta e sem mais companhia, a solidão. Essa solidão cujo único sentido é roubar o sentido a tudo, cuja única vida é converter a vida numa desilusão, a luz que ofusca as estrelas que queremos ver no manto escuro da noite, a mão que mata de amor amordaçando o silêncio. Está aí, em cada esquina, em cada rua. A mesma solidão que sentem os que se lançam nos mares da noite em busca de um horizonte iluminado, os que cruzam as entranhas do esquecimento, os que pedem a um tal Peter Pan um bilhete de regresso. A solidão, sombra fiel do incerto futuro.

Monday 1 December 2008

Há dias assim

Neons em Barcelona, Novembro de 2008. Fotografia de K.


Há dias em que parece que ninguém se lembra que existo, dias que teimam em escapar-se por entre os meus dedos como metafóricos grãos de areia. Há dias em que a vida se encolhe e parece mais curta, me aperta e oprime e é difícil despertar e mais difícil ainda voltar a dormir. Sim, há manhãs em que o único som que ouço é o do sangue que corre nas minhas veias, depois do turbilhão de sons da noite anterior. Dias de Inverno que vão chegando, caíndo como folhas mortas das árvores, dias de conservar o espírito virado para dentro, silencioso como o céu de chumbo lá fora. Mas há dias em que por entre a chuva, o frio e as nuvens de tormenta aparece um ténue raio de luz, algo que impede que me deixe cair nalgum fosso escuro. Observo o livro delgado que descansa dentro de um envelope na mesa de cabeceira, tem um selo de Portugal e o carimbo dos correios diz “Anjos – Lisboa”. Sorrio, porque penso que foi um anjo de Lisboa quem me mandou aquelas palavras, que estavam ali à espera que um dia assim me viesse visitar. E há dias em que recuso chorar no escuro, padecer sobre os meus ossos e amortalhar-me no esquecimento. Há dias em que me agarro à vida e digo ao Inverno que não estou e, virando as costas às suas frias reflexões, digo-lhe que volte noutro dia.