Tuesday 26 May 2009

"Tornarem al Barri Xinès"


Carrer d'en Robador, Barcelona. Fotografia de Jordi O.

Escrever sobre a vida é tão subtil e subjectivo como uma fotografia que capta um dado momento. Há uns dias acompanhei o Jordi a uma exposição de fotografia no CCCB. Eram imagens antigas, dos anos sessenta e setenta, e muitas eram sobre o Bairro do Raval, na altura conhecido como o Bairro Chinês de Barcelona. Falámos muito sobre a Barcelona desses tempos, que eu só conheci através da literatura e de alguns artigos ocasionais. Ele conheceu-a através dos seus irmãos mais velhos e das conversas que tinha com o seu pai, nas mesmas ruas onde passeámos essa noite, passando pelos bares. Fomos pelas ruas antigas e estreitas, pela Ferlandina e pela Joaquin Costa, a noite estava agradável e sentava-se nas calçadas a típica turba multifacetada que habitava ou frequentava esse bairro. O Jordi contava uma história dos tempos de juventude do pai dele, de lutas e facadas na Calle D’en Robador, um pedaço da cidade esquecido por todos, um cenário de fealdade e decadência, hoje cercada por imensos sítios turísticos, hotéis e bares mais ou menos boémios ou de fama duvidosa. Aí parámos para beber um copo num bar sinistro onde meia dúzia de Erasmus tentavam perceber qual era a onda do sítio. A fauna local apurava a última bebida ou o enésimo charro. Saímos em direcção à Rambla, novamente vagueando nas histórias do que lêramos no passado, ou do que alguém que o Jordi conheceu vivera ali. Entrámos no London Bar, um sítio nocturno com carácter de gin tónico e cannabis. A música e a luz não eram as mesmas que eu havia conhecido uma década antes, intocadas então pelos turistas elegantes e leis anti-tabaco. Já não se respirava aquele ambiente freak, nem o fumo pestilento dos cigarros e charros, enrolados naquela música espessa e escura. Partilhámos mais acontecimentos, evocando sítios e pessoas que já não existiam ou eram ficções, fantasmas saídos da genialidade de um Vásquez Montalbán. Tinha sono e a bebida já me pesava na cabeça, e em algum momento deixei de entender as palavras do Jordi, que gesticulava e contava a um empregado algum dos relatos de que nos ríramos antes. Olhei para ele e saíram-me dos lábios palavras sussurradas que ele não podia ouvir: vital é o ciclo da vida / austera e curta a juventude / o dia de ontem é uma derrota / de versos mortos / e palavras e beijos sem retorno.

Monday 18 May 2009

Xeque-Mate


Besalú, Girona, Maio de 2009. Fotografia de K.


A praça tem a solidão dos quadros de Caravaggio, o sossego da memória paira nas arcadas que a circundam. Como uma estreita nuvem no horizonte, o passado parece vagar nas vielas antigas, e nas torres que vigiam a aldeia. Torres, cavalos, rainhas. As nuvens sobre a praça transfiguram-se e assumem formas de coisas de outros tempos, as árvores florescem nas ruas nos seus tons dourados e esverdeados. Sempre o eterno aroma a novela gótica nestas ruelas. Nos festejos medievais de Setembro estive aqui e vi as máscaras, as faixas de mil cores que no fim da festa se amontoavam num canto escuro da madrugada, a triste ressaca de quem sai de cena para sempre. Agora a tarde quente vai caindo em silêncio e as sombras herméticas parecem reclamar o que é seu desde há séculos. A praça abandonada é o campo de batalha entre os contrastes fortes das coisas iluminadas e as que já foram tragadas pela sombra, destacando-se as arcadas, que parecem desenhadas por um pintor flamenco. Algures no emaranhado destas ruas um rei de longa túnica passa e contempla o silencioso espaço onde um dia todos os seus dias foram decapitados.

Tuesday 5 May 2009

O caminhante

Parque Natural de Montseny, Catalunya, Maio de 2009. Fotografia de V.B.


Desconhecia os bosques de Montseny, os tons verde musgo, mas neles vi o sol da manhã tremer como uma música, como um espaço do coração que o tempo reservasse para meditar. Só os rios tinham uma voz azul, para ecoar nos confins do dia. A nossa presença ali parecia sacrílega, seres vestidos de solidão que vinham conhecer a terra, interrompendo o concerto das cigarras a cada uma das horas de calor. Olhava à volta e cheirava a terra húmida depois da chuva da noite, disperso o aroma entre as árvores antigas. Esconderia eu o mundo nos meus sentidos? Deixava para trás, ao passar, os abetos e os pinheiros, quando começava a iluminar-se a luz do estio. O tempo ainda não me detinha, e sentia nas minhas veias o retumbar de uma qualquer tempestade da juventude, um relâmpago na sombra do extenso arvoredo.