Friday 27 November 2009

Da lembrança


El Rastro, Madrid. Abril de 2002. Fotografia de K.



Nunca sabemos o que vamos encontrar no virar de cada esquina. Uma voz conhecida, um aroma familiar, um rosto inesperado. Ontem ao fim da tarde recebi uma chamada de um número que não conhecia. Atendi só porque não estava demasiado ocupado e a surpresa deve ter-se desenhado na minha cara de uma maneira surpreendente. Nunca estou preparado para estas situações, nem esperava ouvir a voz que me chamou. A voz de um amor antigo, a voz da felicidade das calles de Madrid, a voz da esperança no futuro que nos aguardava em algum sítio. Madrid. Madrid… E ali estava aquela voz, a invadir o meu escritório de Barcelona, a dizer-me coisas que me perguntei a mim mesmo tantas vezes. Quando desliguei pensei bastante, recordei. A saudade é azul meia-noite. É só um nome, uma imagem na memória e um vazio no coração. Bea. Beatriz. Se alguém se tivesse aproximado e me tivesse tocado nesse momento, ter-me-ia desfeito em pedaços.

Wednesday 18 November 2009

Fora de época


Parc de Ciutadella, Novembro de 2009. Fotografia de K.


A manhã é mais fresca e maravilhosa que nunca e as pessoas caminham sem pressas pela rua, com roupas leves. Confirmo no calendário do telemóvel a data de hoje: Sábado, catorze de Novembro. O mesmo sol aparece no azul pálido do céu, e o aroma das castanhas assadas vem de longe, como se tentasse recordar os distraídos que o Inverno quase está aqui. Em vão. A luz que invade as ruas faz com que a vida floresça na multidão de corpos que se atraem e se procuram. O calor é perceptível no ar, nas peles, nos risos. Adolescentes percorrem o parque da Ciutadella, jovens incansáveis como nós fomos noutros dias, encontram-se nos relvados, deitam-se ao sol, ao lado das suas bicicletas. Entram no dia de hoje bêbados de desejo, renunciam às abstinências do Inverno e beijam-se sem pudor como deuses que morrerão, sem remédio nem culpa, na cruz dos anos. Hoje em Barcelona tudo parece tomar o seu tempo e e o próprio tempo parece não passar, distraído com as cores dos sonhos que pintam a cidade.


Tuesday 10 November 2009

Prelúdio


Barcelona, Novembro de 2009. Fotografia de K.


Sabia que o estio estava prestes a despedir-se pois não é normal o calor no mês de Novembro, nem mesmo aqui, onde nada é normal. Os dias duravam só o que lhes permitia a noite, e acordava com a primeira luz do amanhecer nos olhos e um pouco de frio no corpo. Mas o cheiro da brisa que entrava pela janela aberta desmentia a época do ano e quase parecia que, como no Verão, o melhor sítio para apreciar a alba era nos telhados. Amanhecia e custava despedir-me dos sonhos tranquilos de sábado, aquela espécie de nuvens de algodão doce da mente que o espreguiçar reduz ao esquecimento. Subi ao telhado e esperei que o sol fosse subindo e tornando nítidos os contornos e cores das coisas. Nada se movia a não ser a brisa. Fiquei em silêncio muito tempo, a ouvir o vento suave que passava, rodeado pelo sussurro dos milhares de folhas das árvores dos jardins dos vizinhos. Só eu e o último silêncio que antecede os dias dos homens. Fiquei ali uma eternidade.