Saturday 27 December 2008

Oito anos

Porto, Dezembro de 2008. Fotografia de K.


Noite fria, muito fria. Não se via ninguém nas ruas desertas, às nove da noite. Mas nós estaríamos juntos outra vez, depois de tantos anos. As saudades, as conversas antigas e as que mantivémos tantos anos por Skype ou no Messenger ou por telefone. As descobertas que fomos fazendo, as aventuras separadas, os sonhos que sonhámos e vivemos, longe uns dos outros, as fotos que fomos enviando para que nunca nos esquecêssemos que algum dia voltaríamos a estar todos juntos. Mais velhos, com filhos, casados, não importava… Cada um vindo do sítio onde decidiu viver, ou onde o destino acabou por nos levar. O Pedro que veio do Malawi, o Gui de Tóquio, o Nuno de Nova York, a Patrícia e o Pedro de Madrid, o Filipe de Auckland, a Helena de Singapura, a Joana de Budapeste, o André de São Paulo, a Cláudia de Londres, o João de Tunes, a Susana e o Filipe de Hong Kong, a Marta de Macau e eu de Barcelona. Há oito anos que não estávamos todos juntos, mas nunca nos perdemos no tempo. Nunca fizémos promessas, nunca dissémos adeus, sabíamos que por mais afastados que estivéssemos, o que nos unia era mais do que o respeito, a saudade, a amizade. Era o espírito da aventura com que sempre enfrentámos a vida, olhámos o futuro de frente e agarrámos as rédeas da aventura. Não deixámos a vida passar em branco. A felicidade explodia nos nossos sorrisos e os abraços faziam a vez das palavras que não saíam, e o frio desaparecia entre nós.

Monday 22 December 2008

Silent Nights

Rua de Santa Catarina, Porto. Dezembro de 2008. Fotografia de Mariana Gelabert.


Sente-se o Natal nas ruas do Porto. Caminho sozinho pela Baixa, absorvendo os odores, cores e sons típicos. As castanhas assadas vendidas na rua, as luzes que brilham entre as casas antigas das ruas que sempre conheci, as expressões características desta cidade nortenha. Percorro as rotas que antes fazia tantas vezes e agora são apenas passeios como os de qualquer turista, procuro as pessoas que antes eram conhecidas nos cafés, nos bares e nas lojas, mas que já não encontro. Ou porque esses sítios já não existem, ou porque as pessoas já não estão vivas ou foram elas também procurar a sua sorte noutros sítios. Lembro-me de um homem magro, de óculos grossos e com uma perna defeituosa que trabalhava no antigo Café Imperial da Avenida dos Aliados e que há cinco anos encontrei na Baixa a pedir esmola, inválido, idoso e sem ninguém. Não o encontrei mais, por muito que observasse as pessoas que pediam na rua, por muito que perguntasse por ele em cafés, quiosques ou aos engraxadores de sapatos que ainda recordava. Também já não encontrei alguns familiares e conhecidos, cuja ausência eu já conhecia mas é mais real, muito mais real nesta altura do ano. Tudo isto me vem à memória ao caminhar nestas ruas, tal o poema de Natal do Vinicius de Morais que me deu a conhecer alguém há já muitos anos: “Para isso fomos feitos / Para lembrar e ser lembrados / Para chorar e fazer chorar / Para enterrar os nossos mortos”. Digo estas palavras enquanto ando de mãos nos bolsos mas sorrio ao recordar os rostos que conheci estes últimos dias, as caras dos bebés e das crianças que já preenchem os nossos jantares de Natal, os filhos dos amigos que vieram alegrar as nossas vidas e preencher os espaços vazios dos que já não estão. Também para isto fomos feitos, “Para a esperança no milagre / Para a participação da poesia”. Sim, sente-se o Natal nas ruas do Porto, nas vozes e nos silêncios, nas luzes e na escuridão.

Tuesday 16 December 2008

Me fui en un día de lluvia

Bairro de Sants, Barcelona. Dezembro de 2008. Fotografia de K.

O temporal abate-se sobre Barcelona, a tarde é escura e a luz que resta é apenas a que a espaços surge da fúria dos relâmpagos. Com o entardecer, pouco a pouco, a chuva transforma-se em noite. Penso em ti, mas não estou contigo. Penso em ti e estou com outra pessoa, mas na minha mente és tu quem aparece, saída da prateada chuva vespertina, e sinto-te tão perto que consigo cheirar o teu perfume. De quem é o corpo que toco? De quem é a respiração que ouço tão perto do meu ouvido? E este corpo procura-me, fala-me, pede-me que o tome e esqueça tudo o que está fora desta sala, que deixe que o passado caia no esquecimento de um beijo. E então compreendo que a distância é um conceito que não é comprensível para mim. Sinto-te tão perto e estás tão longe, tenho-a aqui e sinto-a a mil milhas de mim. A vida expande-se silenciosamente para além das grandes janelas molhadas, e as leis da física não são mais do que enunciados teóricos diluídos nas gotas destas janelas. Gotas que passeiam a grande velocidade nos vidros, e desagregam em tons e formas o sorriso que vejo à minha frente e os braços que me cingem para criar o som de outro riso e a luz de outro olhar. Observo o semblante primoroso que tenho diante de mim, e ouço as palavras entrecortadas que me sussurra, hoje só há duas coisas no mundo para mim, tu e a chuva. Não respondo e fecho os olhos, porque não sei mais o que fazer ou dizer. A chuva impetuosa cai cada vez mais forte, como se acometesse por todas as partes, anulando todas as distâncias, e imagino os nossos corações tocando-se, nós dois sob um chapéu de chuva que mal nos protege da intempérie, saltando as poças de água na Praça Camões. Saio para a rua e penso que só a chuva pode levar consigo o que trouxe, e só me resta esperar por dias de sol em que saiba aproveitar o que tenho ao alcance das minhas mãos. As luzes dos candeeiros já se acendem e caminho sob a chuva crepuscular, cai a noite e apesar da escuridão e do frio este é para mim um doce entardecer, pois transformou-se na perfeição da tua lembrança.

Wednesday 10 December 2008

As ruas da cidade

Calle Santa Rosa, Gràcia, Barcelona. Dezembro de 2008. Fotografia de K.

Nos recantos mais escuros de cada alma, nas esquinas mais clandestinas de cada rua, onde alguém espera o céu, onde já ninguém espera nada. No sal de uma lágrima, num latido longínquo ao entardecer, na neblina da madrugada. Sempre marca a sua presença, discreta e sem mais companhia, a solidão. Essa solidão cujo único sentido é roubar o sentido a tudo, cuja única vida é converter a vida numa desilusão, a luz que ofusca as estrelas que queremos ver no manto escuro da noite, a mão que mata de amor amordaçando o silêncio. Está aí, em cada esquina, em cada rua. A mesma solidão que sentem os que se lançam nos mares da noite em busca de um horizonte iluminado, os que cruzam as entranhas do esquecimento, os que pedem a um tal Peter Pan um bilhete de regresso. A solidão, sombra fiel do incerto futuro.

Monday 1 December 2008

Há dias assim

Neons em Barcelona, Novembro de 2008. Fotografia de K.


Há dias em que parece que ninguém se lembra que existo, dias que teimam em escapar-se por entre os meus dedos como metafóricos grãos de areia. Há dias em que a vida se encolhe e parece mais curta, me aperta e oprime e é difícil despertar e mais difícil ainda voltar a dormir. Sim, há manhãs em que o único som que ouço é o do sangue que corre nas minhas veias, depois do turbilhão de sons da noite anterior. Dias de Inverno que vão chegando, caíndo como folhas mortas das árvores, dias de conservar o espírito virado para dentro, silencioso como o céu de chumbo lá fora. Mas há dias em que por entre a chuva, o frio e as nuvens de tormenta aparece um ténue raio de luz, algo que impede que me deixe cair nalgum fosso escuro. Observo o livro delgado que descansa dentro de um envelope na mesa de cabeceira, tem um selo de Portugal e o carimbo dos correios diz “Anjos – Lisboa”. Sorrio, porque penso que foi um anjo de Lisboa quem me mandou aquelas palavras, que estavam ali à espera que um dia assim me viesse visitar. E há dias em que recuso chorar no escuro, padecer sobre os meus ossos e amortalhar-me no esquecimento. Há dias em que me agarro à vida e digo ao Inverno que não estou e, virando as costas às suas frias reflexões, digo-lhe que volte noutro dia.

Tuesday 18 November 2008

Un hombre llamado Flor de Otoño*

Parc Cervantes, Barcelona. Novembro de 2008. Fotografia de K.

Barcelona é azul e castanha, blau i marró, as cores misturam-se num abraço sentido e o sol ameno dá uma sensação de paz única. Uma tarde de Novembro perfeita, penso, e estendo-me como um gato ao sol, confirmando que o meu sorriso não desapareceu, antes permanece indelével como as marcas do Outono. Vem-me à recordação alguém que está longe, e deixo-me ficar assim, de olhos fechados, para que essa imagem não se desvaneça. Em Barcelona os sonhos parecem mais reais, apesar de já ter aprendido qual é a minha idade, e quais as minhas limitações. Quando abrir os olhos quero ver com outra ilusão a superfície plana do mundo sem sentido, quero que as cores da tarde pintem as vidas sem glória, as histórias sem paixão. Quero que as folhas douradas e as flores outonais enalteçam a beleza do que vi sem abrir os olhos. E quando chegar o entardecer, já sem despedidas, no murmúrio insone das árvores, terás cruzado o céu até mim apenas com as tuas palabras.


* título de um filme de Pedro Olea

Monday 10 November 2008

Il trionfo della morte


Il trionfo della morte, de Brueghel o Velho, 1562. Visto no Museo del Prado, Madrid.

O céu plúmbeo e o vento faziam de Barcelona uma cidade triste e desolada, e nas ruas geladas e invernais avenidas poucos se aventuravam naquela tarde de Novembro de dois mil e seis. Andava pelo Bairro Gótico, escondido nas vielas e abrigando-me junto às paredes de pedra antiga, sem uma direcção fixa. Pareceu-me ver uma pessoa conhecida, que caminhava uns metros adiante de mim, e prestei atenção à sua maneira de andar, de vestir, à maneira como o vento dançava no seu cabelo. E então soube. Assim, de repente. Era a Daniela. E no entanto, não podia ser porque já não estava entre nós, e tinham passado já tantos anos. Caminhava à minha frente, não lhe via a cara, mas era ela. Era ela. Ouvia o eco dos seus passos nas paredes seculares, e continuava a caminhar, até entrar numa pequena praça, onde a perdi. Então numa esquina vi uma placa com o nome do local, Sant Felip Neri, e os meus olhos marejaram-se de lágrimas. Mas ela tinha desaparecido, e em frente estava a igreja do Oratori de Sant Felip Neri.

Naquela manhã olhava o seu cabelo negro tão suave, que aquele vento frio de uma manhã de Janeiro na sierra de Madrid fazia ondular como uma bandeira. Estávamos ao pé da montanha, e as rochas pareciam estranhamente nuas no meio de um universo branco de neve. O sol era radiante e o frio vivíssimo, tínhamos subido ali para um evento benéfico da Ordem de Sant Felip, que a Daniela ajudava. Falava dos maciços rochosos, de como se formavam no fundo de mares antigos, pela acumulação de conchas e fósseis animais ao largo de milénios. Eu nunca tinha pensado nisso, e enquanto sentia o seu perfume, contemplava maravilhado aqueles colossos que sentia tão sólidos sob os meus pés, nada mais do que pó deixado por milhões de vidas, e pensava Il trionfo della morte. Mas ali, na desolada montanha, o perfume dela era o triunfo da vida, a sua camisola de lã ajustava-se ao seu corpo e o vento movia os seus cabelos como uma bandeira de glória e os seus olhos negros, meio risonhos meio melancólicos, faziam-me sentir vivo como nada antes o tinha feito.

Quantos anos passaram desde essa manhã? Sete, oito? A juventude escapa-se-nos, num momento damo-nos conta que chegamos a uma etapa da vida em que já não somos quem fomos. E apesar de tudo... apesar de tudo o meu coração, quando volto a vê-la nas minhas recordações ou nos meus sonhos, late com a mesma intensidade de antes. Antes, quando as suas palavras me deixavam sem respiração, e as mãos me tremiam e sentia fogo no peito. Este é o meu segredo. Não o contei nunca a ninguém, nunca contei que a vi um dia, guiando-me em silêncio até à igreja do Oratori de Sant Felip Neri. Guardei isto só para mim, a mais ninguém importa. A quem iria importar a minha história?

Sunday 2 November 2008

La relógica invisible

Metro de Barcelona, Outubro de 2008. Fotografia de K.



Chovia em Barcelona, a tarde era vazia e cinzenta e as ruas estavam desertas. A chuva fustigava a cidade desde manhã e quando entrei na estação de metro completamente empapado tive que dar uma corrida para conseguir entrar na carruagem que estava parada na plataforma de embarque. Na carruagem não ia muita gente e aproveitei para sentar-me e evitar pensar em todas as coisas que me ocupavam o pensamento, tão vazias e cinzentas como a própria tarde. As ausências, as distâncias, os clarões da memória que não conseguia justificar nem com o meu próprio egoísmo, indiferença ou cansaço. Tirei o casaco encharcado e reparei numa rapariga que se aproximava, falando em voz baixa com os passageiros, estendendo-lhes algum papel que, um após outro, iam recusando. Outros nem a olhavam. Deixava alguns papeis nos assentos vazios. Era pequena, magra e tinha ar de menina, teria uns vinte e cinco anos. Vestia de castanho escuro, como o seu cabelo curto e quando se me acercou esboçou um sorriso tímido que contrastava com os seus tristes olhos escuros. “Queres comprar um livrito com as minhas poesias?”, perguntou-me. Fiquei um pouco surpreendido mas disse sim, e estendi-lhe o euro que ela pedia em troca. “La relógica invisible”, chamava-se. Eram oito folhas agrafadas, uma edição manual, ilustrada com simples desenhos, quase infantis. Na capa li o nome dela: Serena Urdiales. Fui folheando o pequeno manuscrito e li um poema ao acaso, chamava-se “Las alas del deseo”. “Un ángel diciendo / que quiere tener peso, conocer / los colores aromas y sabores, / encontrar dónde / comienza el tiempo y termina / el espacio. Encontrar, / no la estación donde el tren / se detiene, sino / la estación / donde la estación se detiene.” Quando olhei, vi-a voltar para trás, recolhia os exemplares que deixara nos assentos que não estavam ocupados, talvez com a esperança que alguém mudasse de opinião. “Só me compraste tu”, disse-me enquanto recolhia os livritos ao meu lado. “És tu quem escreve?”, pergunto. “Sim, sou a Serena”, respondeu em voz baixa, “mas dá igual, quase ninguém compra. As pessoas já não gostam de palavras”. “Não deixes de escrever nunca”, digo-lhe enquanto os seus olhos tristes me fitavam. No seu rosto passou uma sombra de melancolia, e a sua mão pequena fez um gesto de indiferença, como se afastasse a ilusão das horas sem retorno. “Seria bom, se pudesse começar tudo de novo. Noutro sítio, onde pudesse escrever as palavras que levo dentro. A vida é decepcionante, não?”. Sim, é decepcionante, Serena, pensei enquanto a vi sair para entrar noutra carruagem.

Monday 27 October 2008

A luz de Lisboa

Igreja das Chagas, Lisboa, Outubro de 2008. Fotografia de K.

O dia estava luminoso como um milagre, a tão famosa luz de Lisboa banhava a cidade. Nem os céus da mediterrânica Barcelona se compõem de tons tão definidos, de tal nitidez e harmonia que faz com que tudo pareça parado no tempo. As casas da baixa lisboeta adoptavam os matizes suaves e quentes daquela tarde do final de Outubro e pareciam reflectir na sua alvura o segredo dos países ibéricos: a benção de um dia perfeito a uma semana de entrar o mês de Novembro. Cheguei um pouco antes da hora à Igreja das Chagas, e fiquei a observar o casario e os tons dourados da tarde. Alguns familiares e convidados começavam a chegar para a cerimónia, e falavam entre eles em tom baixo e sereno, como se não quisessem interromper abruptamente o saborear daquela tarde sem pressa. Pensava nos noivos que em breve estariam casados, em tudo o que fez com que nos conhecêssemos, em todas as coisas que aconteceram e que vivemos para que eu pudesse estar ali. Fechei os olhos e deixei-me beijar pela luz quente que caía, e senti de novo desenhando-se na minha face aquele sorriso que me invadiu recentemente. Ainda estava comigo, mais forte, mais tranquilo, luminoso como a tarde e como quem o fez brotar em mim. Alguns dos meus amigos chegavam entretanto e cumprimentávamo-nos alegremente, desta vez era a luz da amizade que resistira a anos de separação que nos aquecia. A Mónica mostrava-me a prenda que ela e o João ofereceriam, e o cartão que a acompanhava. Tinha escrito numa caligrafia belíssima um poema de Alberto Caeiro, que a Mónica leu com o seu nítido sotaque catalão.

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não sei andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se não a vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

As palavras invadiam-me, o céu límpido era da cor que deve ter a ilusão, e aquele sentimento que crescia dentro de mim era tão forte e decidido que não sabia que nome lhe havia de dar, mas sentia-o aflorar nesse sorriso. Fechei os olhos de novo e senti a quase imperceptível brisa do entardecer passear entre nós. Aquela tarde parecia um momento mágico em que os sonhos e os presságios dos dias felizes ainda por vir passeavam pelos telhados vermelhos do Chiado, deixando atrás de si uma espécie de alegria musical. Naquele momento desejei que não tivesse que partir nunca.

Tuesday 21 October 2008

Outubro

Barcelona, Outubro de 2008. Fotografia de K.

Para a Marisa


Dizem-me por vezes que é absurdo o Universo, que a vida não tem sentido. Mas não é um sentido o que procuro, nem uma explicação ou uma promessa, senão o estar aqui, vivo e em equilíbrio comigo. Como aquela garrafa que avisto na praia, uma simples garrafa que aguarda que suba a maré, que a levará à deriva ou talvez para algum destino que escolha. Gosto deste simples abandono, sim, a palavra justa será abandono, a doce renúncia que me proclama dono e senhor do meu caminho. Hoje sinto vontade de deixar a outros as tarefas deste mundo, e que o meu mundo seja a magia desta tarde, e dos sonhos que ardem dentro do meu coração. Quero deitar-me no areal e sentir a quietude de Outubro pousar sobre mim, essa subtil penumbra outonal, e saber que ninguém virá interromper a minha tarde. Quero viver o que sinto dentro de mim, não quero sobressaltos, nem vozes, nem horas marcadas. Agora sei onde está o meu equilíbrio, agora sei que vive dentro de mim algo que é mais vivo do que a vida que vivi.

Friday 10 October 2008

In like a fly, out like a fly

Guinness num bar do Raval. Barcelona, 2008. Fotografia de K.

Quando acordei não me lembrava de nada da noite anterior. A minha cabeça parecia a ponto de explodir e a recordação de demasiadas Guinness aflorou os meus lábios ressequidos. Quando me virei vi a sua cabeça, ao lado da minha, na almofada e beijei-a suavemente na testa e nos cabelos desalinhados. Mas já não era um beijo como na noite anterior, e o sol fulgurante que entrava pela janela parecia querer evidenciá-lo ainda mais. Parecíamos dois completos estranhos, apesar de estarmos nus na mesma cama, a luz do dia novo fazia o seu papel e rompia o engano da noite que passou, apagava os momentos oníricos da loucura do álcool e do sexo. A luz expunha tudo cruelmente, sem complacências pela doçura do que passou, e ela levantou-se lentamente e penteou com os dedos o ondulado cabelo castanho e depois vestiu-se sem dizer uma palavra e saíu para a rua. Sem uma palavra, sem um olhar. Da varanda da janela do quarto grande ainda a vi, já quase se perdia de vista, cruzava a Diagonal em direcção ao bairro da Gràcia. E a vida continuou, sem tempo para pensar em nós, sem questionar-se se algo fazia sentido. Apenas alguns flashes fugazes daquela noite foram surgindo de longe a longe. As fotografias na máquina de fotos rápidas no Metro, as músicas dos bares boémios do Raval, as cervejas e as vodkas, o meu coração a bater descompassado, os nossos corpos vorazes, e a paixão sem alento. Sim, a vida continuou e não olhou mais para nós. Como se não houvesse tempo a perder, uma vez terminada a noite. Easy come, easy go. Não trocámos números nem direcções, e talvez ela já não recordasse onde eu vivia, embora eu me lembre de então pensar que já na manhã seguinte, enquanto ainda estávamos na cama, eu já só habitava no esquecimento dela.

Sunday 28 September 2008

Queria contar-te a história mais bonita do mundo

Escola Secundária Clara de Resende, Porto, 1991. Montagem de K.


Para a Marta Lagos, onde quer que esteja


Eu tinha uma mochila da Nike e um blusão cinzento. Usava o cabelo muito curto e loiro, e esperava na entrada da escola para te ver chegar. Tu vinhas de Vespa, preta como o teu capacete. Guardava sempre o meu melhor sorriso para quando tiravas esse capacete e, sacudindo o longo cabelo louro, olhavas para mim. Sabias que eu estava ali mesmo antes de parares, e vinhas sempre provocadora pedir-me um cigarro. Sabias também que eu não fumava.

Às vezes ias assistir aos treinos da equipa de volley da escola com alguma amiga e fingias que olhavas para os outros rapazes mais velhos, da tua idade. Um dia a bola foi parar perto de ti e quando a fui buscar disse-te "sei que é a mim que vens ver, porque não mo dizes?". A resposta foi uma careta a desdenhar a minha afirmação, e o rubor a surgir na tua face. "Não ligo a miúdos", disseste, e eu pisquei-te um olho e sorri, antes de voltar para o treino.

Cadernos pautados, livros e folhas quadriculadas faziam parte dos meus dias. Calções de desporto, joelheiras, as fugas aos almoços horríveis na cantina da escola. A passagem da companhia do Júlio Verne para o García Márquez, do Tintin para o Corto Maltese, dos Dire Straits para os Soundgarden. Os jogos de Pacman trocados por sessões de cartas, sempre à procura da mágica manilha. Os torneios de futebol nos intervalos das aulas adiados por beijos escondidos.

Um dia pedi-te ajuda para um trabalho de Português, o que provocou primeiro o teu riso mas depois uma anuência com a qual eu não contava. A composição que tinha sido pedida era difícil e eu queria contar com a tua ajuda, além da tua companhia. E como me ajudou o teu sorriso, como me inspirou a tua pele morena, o teu fresco odor adolescente. Quando me beijaste perguntei-te ao ouvido se já ligavas a miúdos, e rimos ambos, um riso que por vezes ouço, um ricochete de felicidade nas paredes intemporais da vida. Não sabia nessa altura que a primavera dura apenas um segundo.

Mostrei-te o trabalho final antes de o entregar, afinal tinha-o escrito por e para ti. Eu sabia que estava bom, mas o meu entusiasmo só apareceu depois de ver o teu. Não queria ter uma boa nota, nem queria louvores da professora, queria apenas contar-te a história mais bonita do mundo. Disseste-me que não deixasse de escrever nunca. Ainda hoje faço dançar a tinta negra de uma caneta, que desenha no papel formas do alfabeto e nessa dança aparecem as palavras que já lá estavam antes da tinta as revelar. Ainda hoje abro um ficheiro de Word e primo as teclas que comandam o aparecimento de caracteres nos cristais líquidos do écran. Ainda hoje, tanto tempo depois de teres desaparecido. E sempre que o faço lembro-me das palavras que disseste nessa tarde antiga, lembro-me que um dia te quis contar a história mais bonita do mundo.

Friday 12 September 2008

Premonição

Cala Mitjaneta, Menorca, Agosto de 2008. Fotografia de K.


Quando olhei para o Mediterrânico vi-o estender-se como uma língua azul sobre a ilha de Menorca. Lá ao fundo, à direita, a Cala Mitjaneta, a praia dourada, escondida atrás das rochas como um tesouro perdido. Era a hora do silêncio, em que apenas o suave sussurro do mar era audível, como música enterrada na areia. Assomava-me sobre o mundo, abraçado pelo vento que trazia o aroma dos bosques e do arvoredo, e esperava para ver os meus amigos chegar no veleiro branco, no local combinado. Chegariam e aquela praia não seria o nosso limite, enquanto o Verão continuasse a pincelar a natureza de um tom azul-esverdeado que tinha matizes de uma felicidade antiga. Respirei o ar quente e cheio de promessas das coisas que havia imaginado, escondi-me um pouco na sombra, fechei os olhos e sonhei que a tarde era um falcão azul, que se perdia nos céus com as suas asas nuas.

Wednesday 10 September 2008

Roma

Piazza Navona, Roma. Setembro 2008. Fotografia de S.L.


...Procuras Roma em Roma, ó peregrino,
e achar em Roma a própria Roma falhas;
se agora são cadáver as muralhas,
é de si mesmo túmulo o Aventino....
Jaz, onde antes reinava, o Palatino;
e, do tempo corroídas, as medalhas
mais parecem destroços de batalhas
de outras idades que brasão latino....
Só o Tibre restou, cuja corrente,
se a regou cidade, hoje sepultura,
a chora em som funesto e comovente....
Ó Roma, de teu esplendor e altura
ruiu o que era firme, e tão somente
o transitório permanece e dura.
"A Roma sepultada nas suas ruínas", Francisco de Quevedo

Monday 1 September 2008

Só para dizer que finalmente chegaram... as férias

Anna e Maite. Menorca, Agosto de 2008. Fotografia de K.


Já o tinha escrito há uns anos, noutro blog, mas tenho vontade de escrever outra vez estas palavras, tão merecidas. "A vontade de partir vive dentro de mim, apenas à espera da madrugada em que tudo volte a ser novo e desconhecido. À espera daquele frio no estômago e do suor na palma das mãos, sabendo que a minha vida cabe dentro de um par de malas e, não tendo mais nada, tenho tudo."

Até breve.

Tuesday 12 August 2008

Decomposição da luz

Carrer del Bisbe, Barcelona, Junho de 2008. Fotografia de V.B.


O tempo escapou-se quando começou a estação em que rimavam os nossos nomes, como se fôssemos adolescentes eternos. Abandonaram-nos as poesias clandestinas das ruelas do Bairro Gótico, as palavras e as caminhadas sob o prisma dos oblíquos raios do sol poente. Sem sabê-lo caminhávamos já em direcção às feridas interiores do silêncio, ali onde as vozes da memória perdem o seu vigor e as suaves ondas mediterrânicas varrem os resquícios dos dias passados. Às vezes vivemos num relâmpago e morremos o resto do tempo. Procurávamos a luz, como a lagarta que se metamorfoseia em borboleta, e levávamos dentro esse fulgor nas constelações profundas do nosso ser. Pensávamos ser os eternos exploradores do amanhã mas não suspeitávamos sequer da impossível convalescença do nosso futuro.

Wednesday 30 July 2008

El llano en llamas

Durango, México. Fotografia de Olivier Alex.

Ontem fui despedir-me do Alejandro. Mastiguei esse verbo pelo caminho e resolvi não pensar demasiado nele, nem na partida iminente. Voltava ao México natal, um regresso que se adivinhava já pela falta da documentação essencial para continuar a residir na Europa. Voltava na manhã seguinte ao seu llano en llamas, a planície em chamas do interior sobre a qual escreveu Juan Rulfo. Uma certa impotência ronda-nos sempre nestes momentos, uma vontade interior de querer mudar o rumo das coisas, de poder gritar ou imaginar alternativas. Mas morre-nos na garganta. E no olhar. Um dia as nossas vidas cruzam-se. Mais tarde ou mais cedo, separam-se, quem entra numa vida sai dela também. Olhava-o enquanto ele falava do que iria ser o dia seguinte, e os dias que se seguiriam a esse. Em algum momento conhecemos as pessoas que nos marcam para sempre, e quando sabemos que as vamos perder é como se gravássemos na memória o máximo de informação possível, para que nunca desapareçam verdadeiramente. Depois vieram os copos, os brindes, as canções, as mentiras que dissemos entre todos... porque nestas ocasiões os amigos mentem acreditando que dizem a verdade. Com cada adeus a sensação é a mesma, passam meses e anos, e as noites são como poços de esperança de encontrar quem já passou, e as tardes nada mais que caminhos cheios de ausências. Mas há que dormir nessas noites e caminhar nesses caminhos e encontrar a força nos abraços, e ter a certeza definitiva de que estivémos juntos alguma vez, cruzando a planície em chamas.

Wednesday 23 July 2008

I'm the Grinderman, yes I am...

Grinderman, Summercase 2008, Barcelona. Fotografia de Quique.

"I'm the grinderman
In the silver rain
In the pale moonlight
I am open late
Yes I'm the grinderman
Seven days a week
In the pale moonlight
In the silver rain
Yes I'm the grinderman
Yes I am
Any way I can"



Nick Cave e a sua outra banda Grinderman. O poder solto em palco. A magnificiência de um artista completo. Há anos que não recordava ver um frontman como Nick Cave no Sábado passado. Ninguém diria que já vai nos 51 anos. E eu, como um puto, aos saltos e a cantar o tempo todo, de t-shirt , jeans rotos, os Puma laranja e a pulseira do festival. Pensei "Parece que tenho 17 anos!", mas deixei-me levar na torrente musical dos Grinderman e, abraçado aos meus amigos, saltamos e gritamos bem alto "kick those baboons and other motherfuckers out". Nick rules.

Monday 14 July 2008

Sinais

Parque Güell, Barcelona, Julho de 2008. Fotografia de K.


O silêncio do calor abatia-se sobre o parque, e dançava no ar o aroma a estio, flores e terra seca. Naquela palmeira fui procurar outro Verão, busquei o coração mal desenhado, gravado anos atrás naquele mesmo sítio. Um desenho e dois nomes numa praia de madeira em constante transformação, um corpo vivo e sulcado por um canivete, há tanto tempo, a primeira vez que ali estive. Já eram quase imperceptíveis, como se os tivéssemos gravado numa duna com os nossos dedos. O ir e vir de cada estação e o movimento vibrante da seiva haviam arrastado as nossas letras, os desenhos e os sentimentos quase naifs, até que se perderam nos labirintos da eternidade. Eternamente tragados no turbilhão do tempo e nas veias de uma palmeira, no vórtice sem fim de tudo o que se passou naquele parque, entre o sol de outras eras e os sonhos de Gaudí.

Sunday 22 June 2008

Do futuro

Calle Elisabets, Barcelona. Junho de 2008, fotografia de K.


Tenho sido um viajante incansável, percorrendo as ruas de sombra e poeira dourada do sol. Protegido pelas paredes graníticas das casas antigas, sob o baptismo do novo Verão, partilho este final de tarde com a Dana. Um efémero regresso a Barcelona, a quimera de bocas húmidas que festejassem o desejo que traz o estio. Caminhamos sem dizer uma palavra, ouvindo os ruídos dos viandantes e os passos cálidos do calor que passeia. De vez em quando olhamos um para o outro e sorrimos, e reparo em como é perfeita a sua pele e única a forma sensual da sua boca. Mas todas as bocas me deixaram o sabor amargo do vazio, como se cada uma proclamasse apenas a passagem das estaçőes, como se confessassem ao meu verde olhar que não iria criar raízes. As minhas mãos quiseram por momentos encontrar as suas mãos onde floresciam gestos e sonhos de aventuras distantes, mas depois lembrei-me que aquelas mãos também me deixaram no frio abraço do adeus. Continuamos a caminhar, aproveitando esse seu tempo de amazona que lhe permitira voltar, aquela voz de fada dinarmaquesa, aquele sorriso de miúda travessa. Falamos em inglês, como se o espanhol fosse já uma remota recordação de um tema tabu que não tocamos, e tenho cada vez mais a certeza que a sua vida nas minhas sombras é a resposta que esperava. A despedida é breve e cordial, no fundo sabemos que não queremos mais vazios nos nossos futuros, um deles aquí em Barcelona, o outro no distante Congo. Mesmo antes do crepúsculo, percorro ainda as ruas de sombra e doces mistérios da Barcelona antiga, com o pensamento noutra pessoa, cuja boca nunca beijei mas que faz com que algo dentro de mim se ilumine, e se aclare a côr do meu olhar, e se alargue o horizonte do futuro onde sei que a vou encontrar.

Monday 9 June 2008

These are a few of my favorite things

Plaza Sant Felip Neri, Barcelona, Maio de 2008. Fotografia de K.


Ver os gatos ao sol como lânguidos seres peludos, ler poesia e sentir a força das palavras, atirar pedras e vê-las saltar no lago do Parque do Retiro, ouvir Zeca Afonso numa estrada secundária numa tarde de Verão. Vinho tinto e queijos portugueses, espanhóis e franceses com conversas amenas, o Museu do Prado com a companhia da Bea, o cheiro do café acabado de fazer, a Praia do Espelho na Bahía, Johann Sebastian Bach no primeiro despertar cada vez que vou a Portugal. O peixe grelhado na esplanada de um restaurante de pescadores, as caretas que troco com o menino que está no carro ao lado num engarrafamento, a chuva de Maio, reler “O Fio da Navalha”, caminhar nas dunas, o cheiro de um livro antigo, ler baixinho Julio Cortázar numa noite fria, o pão da aldeia barrado com manteiga, regar as plantas da Catarina com o shaker de cocktails, o “Begin the Beguine” do Cole Porter, respirar tranquilamente num bosque. Receber um postal, a máquina de escrever Underwood do meu avô, Jordi Savall no Palau de la Música Catalana, o barulho das ondas do Atlântico, os casacos de couro retro, velas negras e verdes, os clubes de jazz de Barcelona e Paris.

Cantar sozinho no duche, oferecer flores quando não se espera, tomates cherry, o sabor de um puro cubano, conversas intermináveis na Plaza Sant Felip Neri, ouvir The Magnetic Fields num descapotável na costa de Girona, o aroma a manjerico nas ruas do Porto no S. João, lagostins e cerveja ao pequeno-almoço no Mercat de La Boquería num Sábado de Verão. Dormir ao ar livre, o sorriso da Audrey Hepburn, os amigos boémios e anarquistas, a recordação do primeiro beijo, os fotogramas surreais do David Lynch, o sal na pele e nos lábios depois de um banho no mar, andar perdido nas ruas de cidades que amo, o som de um comboio ao longe, as palavras da Joana Manuel. Os abuelitos madrileños nos bancos do bairro de La Latina, descobrir palavras novas num dicionário, o riso da minha mãe cada vez que digo um disparate, o cheiro de alfazema num quarto, os provérbios de Lao-Tsé, andar no eléctrico 28 em Lisboa, a alegria dos dias de praia em S. Pedro de Moel. As minhas velhas botas Camel, as fotografias antigas da família, as histórias que vivi com os meus amigos, a recordação da magia do Maradona, o sabor do último beijo.

Wednesday 28 May 2008

Citrinos

Caipirinha. Barcelona, Maio de 2008. Fotografia de V.B.

Verde chegas aos meus sentidos, com a lima como aroma da tua boca. Toda a vida te sai dos poros, sumo recém espremido, polpa de alegria, o cabelo claro ondulando ao sol. Danças, animada pela brisa que acaricia o teu corpo, como uma palmeira inclinada para o mar. Desces as escadinhas em direcção à areia e estendes-te na praia, e sabes que aí te encontrarei. Caminho até ti, pela margem dos beijos, num areal de silêncio, num vento sem escalas. Para, como um citrino, madurar-te entre as sombras.

Monday 12 May 2008

Para a Sara, que se acreditou eterna no que dava

Sara. Barcelona, Julho de 2006. Fotografia de K.


Às vezes tudo se esclarece num instante, num ápice de lucidez. Num golpe súbito vês o que fizeste e apercebes-te, absorta e espantada, que outra coisa muito diferente surge diante dos teus olhos. O que tiveste do amor não era amor, mas apenas o resplendor mortal de uma carícia, que não advertiste enganada pela sua mentirosa doçura. E depois veio a triste desilusão. Para sempre amaste uma pessoa sem saber ou intuir que te enganavas, acreditando que eras eterna no que davas, até que um dia te encontraste sozinha. O sonho foi tão necessário para ti como as lágrimas que caíram depois dos teus olhos, quando desfeita a ilusão o sol se escondeu para sempre e tu ficaste abandonada como um brinquedo esquecido.

Wednesday 16 April 2008

Luminosa pende a vida das nuvens

Port de Barcelona, Abril de 2008. Fotografia de M.A.

Luminosa pende a vida das nuvens, espalhando-se pelo porto, delicada e abundante. Enquanto a água se enruga lentamente para descansar, o vento suave corre pela ponte de madeira em busca dos momentos que a calidez da tarde promete. O céu é vasto como se guardasse um segredo imenso, um intenso convite a largar todo o receio de partir, a zarpar esta mesma tarde, a pisar a proa de uma qualquer embarcaçao e abandonar as velas do mastro ao vento. E as velas inchariam como nuvens febris, soltas no ar salgado, alvas como anjos empapados de águas mediterrânicas. Sonho com as velas que se confundem com os desfiladeiros sépia do céu do fim da tarde, com a água que se abre à passagem dos cascos brancos dos barcos. Abençoada corrente, venturoso vento, a pior tormenta hoje nao faria mais que submergir-me no novo mar do céu.

Monday 7 April 2008

O Segredo

Marzia. Autoretrato. Barcelona, Abril de 2008.

Vieste e deixaste-me a tua voz, e permanece ainda o tom melífluo das tuas palavras entre os espaços que visitaste. Deixaste-me o céu alaranjado da tarde e a calidez da amizade, a eterna alegria do talvez. Deixaste-me o Mediterrânico, os rios e as montanhas que se interpõem entre nós, e também a fórmula do regresso. Deixei-te o sol, a claridade enérgica das manhãs e a intensidade da luz difusa. Deixei para mim as trevas, a noite cerrada que já não assusta nem separa, para embalar em mim esse fulgor e continuar a ouvir a tua voz. Voltaste por entre as horas que passaram e tornei a encontrar-te nos jardins desta cidade, depois de cruzadas as portas romanas do tempo. No silêncio calarei o nosso segredo.

Friday 21 March 2008

De um homem sozinho na hora do fecho de um pub

Barcelona, Março de 2008. Fotografia de K.

Debruças-te no balcão quando os demais já se foram, e não vês a cara séria do barman que fecha o sítio lentamente. Não foste capaz de incendiar a vida, de vivê-la e reduzi-la a cinzas, e escolher os caminhos sem medo. Os teus lábios estão selados para o mundo e só se entreabrem para sorver o último whisky. Não mais te levantaste cantarolando velhas melodias irlandesas, como aquela do marinheiro bêbado que cantavam os jovens da mesa do fundo horas antes. No teu âmago afogam-se as baladas e canções do mar, extraídas dos velhos cancioneiros celtas, já esquecidas entre o whisky ambarino e o desânimo dos dias. Talvez vagueies pelos caminhos encharcados do Inverno, pelas alamedas que levavam à praça da tua aldeia, onde as raparigas outrora desejavam o teu coração de cotovia. Agora o teu coração bate devagar, separado da madeira do balcão pelo couro do casaco, e nele te debruças com aquela mesma melodia irlandesa no pensamento. Os olhos arrogantes do barman pousam de novo sobre ti e perguntam-se “que vamos fazer com o marinheiro bêbado?”. Mas já longe ia ele, perdido noutras marés, com a cabeça apoiada no balcão dos sonhos e toda a obliquidade da luz reflectida nos cabelos grisalhos.

Saturday 8 March 2008

Como um vôo verde na bruma

La Garrotxa, Girona, Março de 2008. Fotografia de K.


Os meus olhos pousam sobre as ervas do campo, no desolado vale da montanha. Talvez no fundo todos saibamos as palavras que nelas nascem quando o vento se passeia livre sobre as suas delgadas formas verdes. Quase ninguém repara no seu nascimento, ninguém nota quando desaparecem, minuciosas, tenazes, delicadas, as ervas do campo. Abandonadas à sua sorte, inertes, sujeitas a ser devoradas pelo mundo, ou pisadas por um sapato como o meu. Imagino as ervas reflectidas na minha retina, frágeis, com os seus caules perfeitos, como um vôo verde na bruma.

A solidão acompanha-nos nestas terras, em todas as terras, e avisto-a também entre estas ervas do campo, imensas, um universo de mensagens eternamente à espera de serem lidas, um mar de ondas que jamais chegarão a uma praia, sob uma luz compartida de uma pequenez infinita. O mundo parece sorrir, burlão, da translúcida presença de tudo e ditar uma regra inalterável, algo que se impõe para todo o sempre. Somos ervas do campo, alfabeto de vento, e não alcançaremos mais que um breve florescer.

Thursday 14 February 2008

Contextualização

Fotografia de Henri Cartier Bresson, vista aqui. Texto publicado originalmente no El Mau como uma contextualização da fotografia.


Nada tenho que ver com a vida quando caminho sozinho sem ter ninguém que me segure a mão, ninguém que me beije a cara quando choro porque não sei para onde vamos, e pelas esquinas me arrasto com os outros, e o meu reflexo nas vitrinas não é mais que um suspiro fantasmal do outro rapaz que já não existe. Nada tenho que ver com a vida quando percorro a cidade que desconheço, na companhia de outros estranhos com rostos de cinza e passados que já ninguém recorda. A fé há muito que desapareceu, e nada mais resta que o nada que está para vir, anunciado na tristeza incomensurável deste céu cinzento.Nada tenho que ver com a vida quando a vou deixando para trás pelas valas e sarjetas, e desfilo em silêncio nesta caminhada sem fim com os outros fantasmas ambulantes. Nada tenho que ver com esta cidade em ruínas, nem com a ruína que fizeram do meu coração, ainda que seja nesta cidade que se traçou o destino dos nossos dias. Das janelas saem ainda os sinais da tragédia, despojos da miséria que chegou, as roupas esquecidas ainda penduradas, o espanto por todo o lado como uma tripa esventrada. Nas casas não vive ninguém já, e ao entardecer parecem tumbas silenciosas que assistem à nossa marcha. Nelas houve um dia risos, e nelas se encontravam os que se amavam pelas manhas, e eu vivi também um dia numa casa assim. Nada tenho que ver com a vida quando esta me morde o coração a cada passo, e entre as lágrimas que já ninguém limpa do meu rosto, desejo ardentemente que todos pudessem estar vivos, e que tudo pudesse começar de novo.

Saturday 5 January 2008

La Boquería

Mercat de La Boquería, Barcelona. Fotografia de K.

Era Sábado de manhã e passeava no Mercado de La Boquería. Um homem de uns cinquenta anos, pelo menos de aparência, caminhava à minha frente. Tinha um ar desalinhado de mendigo, ténis rotos e uma camisola quase desfeita que me chamou a atenção por ter nas costas uns desbotadíssimos Bugs Bunny e Daffy Duck. Caminhávamos a uns metros de distância, entre as bancas de peixe e marisco fresco, frutas, especiarias, carnes. Gosto de mercados em geral, e particularmente da Boquería, mediterrânica, espontânea, verdadeira, sobrevivente da modernidade e da higiene, da caça às bruxas sanitariamente correcta duma Europa que cada vez mais tenta esconder as suas origens. Ia vendo as pessoas que passavam no mercado, enchendo os meus sentidos de cores fortes, de aromas cruzados, ouvia o rumor intenso das vozes que gritavam os pregões, que perguntavam preços, que tocavam nas coisas, que regateavam. Ia assim, envolto num sonho do presente e do passado, entre as pegadas e os rastos do que fomos e do que somos, e via o mendigo que ia à minha frente cumprimentar os donos das bancas do mercado. Via aquele homem arrastar os pés entre o chão sujo e parecia ser habitual dali, um daqueles desafortunados que pedem esmola, carregam cargas ou fazem pequenos favores. Quando passava em frente a uma das bancas de peixe é chamado por uma peixeira. O homem voltou atrás e aproximou-se dela, uma mulher já madura, grande e forte, com um avental todo manchado. Pegou num peixe da vitrine, embrulhou-o em papel de jornal e ofereceu-o discretamente ao mendigo, sem dizer uma palavra. E então o mendigo sorriu o seu sorriso desdentado, acenou com a cabeça e fez um gesto como que de beijar o embrulho. E depois partiu.

Fiquei parado a observar a peixeira, que tinha voltado ao trabalho sem dar mais importância àquilo. Amontoava o gelo picado sob as gambas em exposição e acondicionava as douradas e os rodovalhos. Lembrei-me das peixeiras que tinha visto noutros sítios da minha vida e sempre me deixavam uma impressão inapagável, no mercado do Bolhão, na lota de Matosinhos e de Angeiras, no mercado de Aveiro. Todas pareciam a mesma, ou havia sempre algo comum àquelas mulheres. Não era o avental sujo, o corpo gordito ou as mãos avermelhadas pelo trabalho árduo. Era aquela força e aquela capacidade de agir sob o impulso pessoal da caridade sem esperar aplausos nem nada em troca. Apenas porque sim. Meti as mãos nos bolsos e continuei a andar, e naquele momento desejei apenas que sítios assim, onde sempre encontro mulheres como aquela, não desapareçam nunca.