Friday 21 March 2008

De um homem sozinho na hora do fecho de um pub

Barcelona, Março de 2008. Fotografia de K.

Debruças-te no balcão quando os demais já se foram, e não vês a cara séria do barman que fecha o sítio lentamente. Não foste capaz de incendiar a vida, de vivê-la e reduzi-la a cinzas, e escolher os caminhos sem medo. Os teus lábios estão selados para o mundo e só se entreabrem para sorver o último whisky. Não mais te levantaste cantarolando velhas melodias irlandesas, como aquela do marinheiro bêbado que cantavam os jovens da mesa do fundo horas antes. No teu âmago afogam-se as baladas e canções do mar, extraídas dos velhos cancioneiros celtas, já esquecidas entre o whisky ambarino e o desânimo dos dias. Talvez vagueies pelos caminhos encharcados do Inverno, pelas alamedas que levavam à praça da tua aldeia, onde as raparigas outrora desejavam o teu coração de cotovia. Agora o teu coração bate devagar, separado da madeira do balcão pelo couro do casaco, e nele te debruças com aquela mesma melodia irlandesa no pensamento. Os olhos arrogantes do barman pousam de novo sobre ti e perguntam-se “que vamos fazer com o marinheiro bêbado?”. Mas já longe ia ele, perdido noutras marés, com a cabeça apoiada no balcão dos sonhos e toda a obliquidade da luz reflectida nos cabelos grisalhos.

Saturday 8 March 2008

Como um vôo verde na bruma

La Garrotxa, Girona, Março de 2008. Fotografia de K.


Os meus olhos pousam sobre as ervas do campo, no desolado vale da montanha. Talvez no fundo todos saibamos as palavras que nelas nascem quando o vento se passeia livre sobre as suas delgadas formas verdes. Quase ninguém repara no seu nascimento, ninguém nota quando desaparecem, minuciosas, tenazes, delicadas, as ervas do campo. Abandonadas à sua sorte, inertes, sujeitas a ser devoradas pelo mundo, ou pisadas por um sapato como o meu. Imagino as ervas reflectidas na minha retina, frágeis, com os seus caules perfeitos, como um vôo verde na bruma.

A solidão acompanha-nos nestas terras, em todas as terras, e avisto-a também entre estas ervas do campo, imensas, um universo de mensagens eternamente à espera de serem lidas, um mar de ondas que jamais chegarão a uma praia, sob uma luz compartida de uma pequenez infinita. O mundo parece sorrir, burlão, da translúcida presença de tudo e ditar uma regra inalterável, algo que se impõe para todo o sempre. Somos ervas do campo, alfabeto de vento, e não alcançaremos mais que um breve florescer.