Wednesday 28 October 2009

A língua materna


Porto, Maio 2005. Fotografia de M.G.


Às vezes regresso. Regressos curtos, espaçados entre si, em que aproveito para ouvir e falar a língua em que respiro, a língua que cada vez menos falo. A que chamamos língua materna, esquecida como uma anémona no azul profundo do mar, onde me refugio e sonho nas noites mediterrânicas. A língua em que escrevo, cada vez mais veladamente, cada vez mais uma mistura de diferentes línguas quotidianas. E, no entanto aí está, essa língua que sempre me aparece como as gaivotas que cruzam os céus das cidades costeiras. Nos silêncios revejo as palavras e ouço os fonemas que me levam àquelas pedras cinzentas e ao mar revolto. Não poderão adivinhar a ventura que são para mim estas letras que habitam o ar etéreo, quietas e caprichosas como soturnas vigilantes de um estranho exílio.

Tuesday 20 October 2009

Os telhados de Barcelona


Barcelona, Outubro de 2009. Fotografia de K.


As nuvens de Outubro chegaram para encobrir o magnético céu azul de Verão. Subi ao telhado como noutras vezes, eu que sem saber nunca muito bem porquê, acabo tantos entardeceres nos telhados de casas da cidade condal. A este nunca tinha subido, e sorrio ao descobrir uma nova perspectiva da cidade. Vejo a Sagrada Família lá ao longe, e os sons da cidade parecem muito longínquos, e recordo a primeira vez que escrevi num telhado. Foi na minha casa na calle Rossellón, ao lado de La Pedrera, um texto curto chamado “Se tivéssemos um dia”, há já mais de três anos. Foi uma tarde inesquecível, o sol afundava-se sobre o casario e a Valeria acompanhava-me, fotografando esses momentos enquanto a minha caneta deslizava pelo moleskine. Eu era feliz porque estava ali e escrevia para alguém que estava muito longe, mas ao mesmo tempo muito perto de mim, e sentia que essas palavras eram parte da verdade que levava dentro e era bonito encontrá-las ali, assim, naquele telhado. Agora leio mais do que escrevo nos telhados. E os meus amigos, amigas ou conhecidos a quem peço acesso aos cumes das suas residências olham-me entre boquiabertos e suspeitosos por semelhante requisição. Mas gosto de subir e ficar aqui, a sonhar desperto, pensando que um dia todas as portas se abrirão e então poderei ver tudo, e a surpresa não queimará a minha língua. E então compreenderei o crescimento das plantas, a mudança de pêlo nas crias pequenas, a emancipação das palavras. Encontrarei os sinais da mudança e a queda dos astros no céu será a prova da existência de outros caminhos. Nestes telhados morre em cada entardecer a aparência de um mundo que muda, e um dia no meu olhar nascerá, nua e bela, a essência do seu segredo.

Wednesday 14 October 2009

“Cuando nací, pobreza, me seguiste…”


17 de Outubro é o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Barcelona, 2009. Fotografia de K.


Caiu da barriga da sua mãe e arrastou-se sobre a calçada imunda até chegar a um leito de ossos. A vida toda foi um largo pesadelo, sem afectos nem olhares, com o sabor acre do metal e o incómodo dos piolhos como companhia. Cada noite recostava as costas do seu pobre corpo sobre as pedras frias da rua. E assim, cansado de lutar pela sua comida com as ratazanas, deixou-se amontoar entre os mortos.

Monday 5 October 2009

Sinais

Avenida Diagonal, Barcelona, Setembro 2009. Fotografia de K.


Espero um sinal de aviso, eu que tantas vezes escrevi as palavras secretas num papel, as gravei num grão de areia com a força da ilusão. Espero esse teu sinal. Iluminado por um halo de luz, como quando um grande navio cruza a costa diante das poderosas escarpas, ou quando na noite escura se incendeia a tenda de um circo oriundo de um país longínquo. Espero, impávido no entardecer, sob a memória de tribos antigas que percorreram intermináveis jazidas de carvão de ignotas minas, sob o olhar do tigre inclinado que parece apoiar-se nos últimos raios de sol. Espero um aviso, uma voz ou um assobio, entre os rios de imensos canaviais, e a opulência das montanhas verdes perdidas no horizonte. Procuro-te em todos os cantos do mundo, com uma tocha procuro em vão alumiar os vidros embaciados onde pudesses ter deixado o sinal mágico do teu segredo. Posso esperar, como sempre o fiz, sozinho ao entardecer, nestes dias em que não te deixam cruzar o umbral da ponte do meu rio, nem me deixam seguir pelos caminhos as linhas secretas das pedras do teu vale.