Saturday 30 October 2010

Um dia dirás aos teus netos que o viste jogar

30 de Outubro de 2010. 50 anos de Maradona.


Estava num bar no Born em companhia do Mário, e erguíamos os copos de vinho tinto pela enésima vez. Aproveitávamos a sua passagem por Barcelona para pôr em dia conversas antigas. O Mário era natural de Buenos Aires e eu apreciava de novo a sua doce maneira de falar, o ar paternalista e os gestos que desenhavam histórias no ar, algo a que já me tinha habituado em antigas noites no seu bar em Leça, em Portugal. Nessa altura muitas noites de estudo na Universidade eram trocadas por visitas ao seu bar, onde estudei também disciplinas exigentes: a amizade, o amor, o tango, as empanadas argentinas, a camaradagem...

Nessa noite no Born, entre a aprovação dos Riojas e Priorats que íamos provando, evocávamos o que foi para ambos o melhor jogador de futebol do Mundo: Diego Armando Maradona. Aquela personagem polémica, aquele extra-terrestre que voava nos relvados verdes, com o sorriso de quem amava o que fazia, semeando magia por onde passava. Um génio que nunca teve arrependimentos, apesar dos erros. Só mais tarde, quando eu já estava na idade adulta, compreendi aquela vida de luta, contra tudo e contra todos. Contra a sua condição física, minada pela brutalidade com que o brindavam os seus adversários, incapazes de o conter, e pelas incursões no pesadelo branco da cocaína. Contra a toda-poderosa FIFA, essa multinacional que nunca permitiu que alguém lhe fizesse frente, e menos ainda um sul-americano rebelde que defendia os direitos e a condição dos jogadores, verdadeiros donos do espectáculo do futebol.

Rebelde como o Che Guevara que levava tatuado no seu braço direito, rebelde contra a pobreza da sua infância e adolescência, rebelde contra os papões do futebol. Em particular quando passou por Itália e, no modesto e insignificante Nápoles do sul miserável, mostrou aos Berlusconis e à Itália racista que também os pequenos podem vingar na vida e ganhar apenas com a luta, o sonho, a arte. Estava louco, claro. Como os melhores, louco por jogar, louco por viver, desejoso de tudo ao mesmo tempo, não bocejava mas ardia, ardia, ardia como uma fabulosa grinalda amarela de fogo-de-artifício a explodir.

Em Inglaterra, a mesma que varreu de um Mundial com o golo da mão de Deus e o outro que foi o melhor de sempre, foi honoris causa na Universidade de Oxford, com o título de Mestre Inspirador Daqueles Que Ainda Sonham. Aqueles como eu e os meus amigos e milhões de crianças em todo o mundo, que sonhávamos quando éramos meninos de dez e onze anos e gritávamos de alegria ao ver as suas maravilhas em campo, e queríamos ser como ele, ganhar contra as limitações que o mundo adulto nos ia impondo. Recordo aquele jogo em Junho de 1986 em que, com a selecção Argentina, venceu a Inglaterra no Mundial de Futebol. Os risos e os gritos de felicidade daquele grupo de miúdos que o via num café humilde na Ribeira do Porto diziam o mesmo que a emoção que bailava no olhar do Mário naquela noite no Born, vinte e três anos depois. Diziam o mesmo que milhões de crianças em todo o mundo diriam dele. Fizeste-nos sonhar.