Sunday 2 January 2011

ESCRITOS SOBRE A PEDRA

Montserrat, Catalunya, Dezembro de 2010, fotografia de K.

Neste vale desolado, rodeado por montanhas de sonho, encontrámos escritos gravados numa pedra. Não se percebe exactamente o que é, mas parece ser algo muito antigo, símbolos cinzelados, estrelas, serpentes, figuras humanóides. No silêncio do tempo voam as águias, cantam milongas de tristeza como uma longínqua tarde de domingo. As rochas nuas e austeras contrastam com as árvores que vestem ainda uma espécie de robustez invernal e nas suas copas passeia suavemente o sopro de uma misteriosa nostalgia do mundo. Sons que o Homem aprendeu a esquecer, nestes tempos de angústias e incertezas mundiais. Mas aqui será assim para sempre, neste vale esquecido, à volta destes escritos na pedra, que relembram uma raça antiga e que talvez falem da passagem de algum Deus desconhecido.

Saturday 30 October 2010

Um dia dirás aos teus netos que o viste jogar

30 de Outubro de 2010. 50 anos de Maradona.


Estava num bar no Born em companhia do Mário, e erguíamos os copos de vinho tinto pela enésima vez. Aproveitávamos a sua passagem por Barcelona para pôr em dia conversas antigas. O Mário era natural de Buenos Aires e eu apreciava de novo a sua doce maneira de falar, o ar paternalista e os gestos que desenhavam histórias no ar, algo a que já me tinha habituado em antigas noites no seu bar em Leça, em Portugal. Nessa altura muitas noites de estudo na Universidade eram trocadas por visitas ao seu bar, onde estudei também disciplinas exigentes: a amizade, o amor, o tango, as empanadas argentinas, a camaradagem...

Nessa noite no Born, entre a aprovação dos Riojas e Priorats que íamos provando, evocávamos o que foi para ambos o melhor jogador de futebol do Mundo: Diego Armando Maradona. Aquela personagem polémica, aquele extra-terrestre que voava nos relvados verdes, com o sorriso de quem amava o que fazia, semeando magia por onde passava. Um génio que nunca teve arrependimentos, apesar dos erros. Só mais tarde, quando eu já estava na idade adulta, compreendi aquela vida de luta, contra tudo e contra todos. Contra a sua condição física, minada pela brutalidade com que o brindavam os seus adversários, incapazes de o conter, e pelas incursões no pesadelo branco da cocaína. Contra a toda-poderosa FIFA, essa multinacional que nunca permitiu que alguém lhe fizesse frente, e menos ainda um sul-americano rebelde que defendia os direitos e a condição dos jogadores, verdadeiros donos do espectáculo do futebol.

Rebelde como o Che Guevara que levava tatuado no seu braço direito, rebelde contra a pobreza da sua infância e adolescência, rebelde contra os papões do futebol. Em particular quando passou por Itália e, no modesto e insignificante Nápoles do sul miserável, mostrou aos Berlusconis e à Itália racista que também os pequenos podem vingar na vida e ganhar apenas com a luta, o sonho, a arte. Estava louco, claro. Como os melhores, louco por jogar, louco por viver, desejoso de tudo ao mesmo tempo, não bocejava mas ardia, ardia, ardia como uma fabulosa grinalda amarela de fogo-de-artifício a explodir.

Em Inglaterra, a mesma que varreu de um Mundial com o golo da mão de Deus e o outro que foi o melhor de sempre, foi honoris causa na Universidade de Oxford, com o título de Mestre Inspirador Daqueles Que Ainda Sonham. Aqueles como eu e os meus amigos e milhões de crianças em todo o mundo, que sonhávamos quando éramos meninos de dez e onze anos e gritávamos de alegria ao ver as suas maravilhas em campo, e queríamos ser como ele, ganhar contra as limitações que o mundo adulto nos ia impondo. Recordo aquele jogo em Junho de 1986 em que, com a selecção Argentina, venceu a Inglaterra no Mundial de Futebol. Os risos e os gritos de felicidade daquele grupo de miúdos que o via num café humilde na Ribeira do Porto diziam o mesmo que a emoção que bailava no olhar do Mário naquela noite no Born, vinte e três anos depois. Diziam o mesmo que milhões de crianças em todo o mundo diriam dele. Fizeste-nos sonhar.

Monday 13 September 2010

Memória de uma tarde de Verão


Barcelona, Setembro de 2010. Fotografia de K.


O tom moreno das tuas pernas e o sal do mar no teu ombro direito são a melhor recordação de um sábado vivido sem pressas, que chegou sem se fazer notar, como um amigo tímido e discreto. A noite anterior fora caótica e agitada, mas nesse sábado apareceste na praia tranquila, vestida nesse teu estilo peculiar, com a tua extravagante maneira de gostar de mim e essa secreta força que comanda o rumo da tua vida. Sob o sol escaldante de Setembro oferecias-me inesperadamente a memória de lábios húmidos, o tacto de uma pele de veludo e o ardor de uma chama interior, onde me queimaria sem hesitar. No céu, o adejar das gaivotas e nuvens brancas que flutuavam sem rumo. As tuas pernas morenas, o olhar decidido que desafiava o meu olhar tranquilo, o segredo que as mulheres jovens levam dentro e passeava insinuante no teu sorriso. Sentia-te respirar junto do meu pescoço e parecia que uma obscura verdade descobria o seu véu, ouvia as ondas a rebentar na areia e sentia a areia entre os dedos da minha mão. Pensei que talvez tudo na minha vida fosse efémero, que as coisas boas nunca me duravam muito tempo e resolvi abandonar-me no suave refúgio dos teus braços. A brisa marinha fazia esvoaçar docemente os teus cabelos e foi nesse momento que deixei de pensar e disse o teu nome.

Thursday 2 September 2010

Terça-feira


Fotografia de K.



Às dez liguei-te para dizer-te que já tinha feito dois telefonemas para Hong Kong e um para Singapura, sem falar nos doze e-mails por abrir e a reunião que tinha que preparar para o meio dia. Disse-te também que tinha saudades tuas. Às onze e meia ligaste-me tu a contar-me a tua manhã de trabalho na universidade, os problemas com o aluguer da casa e a falta que sentias de mim. Desejaste-me sorte para a reunião e evocaste a espuma fresca das cervejas que tomamos no Domingo passado. Mas a manhã não era bela nem loira como essas cervejas. Às três e meia liguei-te, depois de almoçar, para dizer que o sashimi que comi me fez lembrar quando fomos ao Kibuka celebrar um mês que nos havíamos conhecido. Às seis ligaste-me tu a dizer que saías a correr para apanhar o comboio, que ainda tinhas que ir ao ginásio e às oito uma apresentação já não sei de que livro e depois jantar e uns copos. Eu disse-te que me ligasses quando chegasses a casa, se não fosse muito tarde. Às duas e um quarto da manhã ligaste-me e garanti-te que não me tinhas acordado. Na varanda via umas poucas janelas acesas nos prédios escuros das redondezas, e ouvia com alegria as tuas notícias nocturnas, os mexericos do teu mundo universitário. O silêncio da noite enaltecia o tom suave da tua voz, e notava-se o feliz que estavas, mesmo quando dizias que tinhas falado em mim várias vezes essa noite. Às vezes gostava que o amor aparecesse de surpresa, como aquelas crianças que se escondem desejando ser descobertas, que brotasse de uma relação intermitente e a fizesse ser algo que valesse a pena. Que valesse a pena por isso perder uma casa, um país, o salário de um ano, estar unicamente empenhado na arte de ser feliz e justo, no outro lado da tua voz.

Tuesday 10 August 2010

Ontem à noite sonhei contigo outra vez

Entardecer em Porto Covo, Agosto de 2010. Fotografia de K.


Muitas vezes tenho o mesmo sonho, um pesadelo recorrente, estranho e inquietante. Desde há muitos anos. Estou sozinho no meio de uma multidão que passa sem me ver ou ouvir, e repito uma frase como um mantra, e demorei muitos sonhos a perceber cada palavra até saber a frase completa. Depois caio no vazio até perder a consciência e acordar deste lado. Antes costumava pensar que alguém me ampararia nessa queda infinita, mas ontem repetiu-se o que já tinha acontecido uma vez. Voltaste a entrar nesse meu sonho. Saíste do meio da multidão e pousaste a tua mão no meu braço. No sonho não sei o teu nome, ou não são precisos nomes, e sorriste-me e disseste-me as mesmas palavras que na vez anterior. E o teu sorriso era a visão mais bonita do mundo, as formas delicadas do teu rosto afastavam as cinzas do dia e a tua voz era o som que faria um perfume sorrir, e as cores falar, se pudessem. E não me amparas na queda porque não chego a cair. Ficamos juntos, sob a inocência da aurora que aparece, e eu olho para os teus olhos como se disso dependesse todo o mundo, e toda a vida corresse no meu ser. E depois acordo.

Sunday 18 July 2010

Tarde verde


Parc de la Ciutadella, Barcelona, Julho de 2010. Fotografia de K.


A tarde é esmagadoramente abrasadora. A sombra da grande árvore e a proximidade do lago do Parc de la Ciutadella dão algum conforto à omnipresente sensação de calor. Na relva verde a luz passeia em todo o seu esplendor, as crianças e as árvores são imagens desta paz estival que me invade, e sei que aqui posso meditar e encontrar o vazio que procuro. Fundo-me com o que me rodeia, as imagens e os sons tornam-se meras recordações na minha mente, a vida do mundo um eco ancestral que se esvai. A liberdade da meditação é uma realidade agora, o pensamento e o sentimento são asas de uma consciência que está agora livre e prescinde deles.


O vazio preenche-me. A solidão emerge das cinzas da memória, feita de cinzas e memória, uma solidão sempre crescente, interior. E neste isolamento interior, no absoluto abandono de tudo eu alcanço o que busco. Esta solidão espontânea é algo que todos temos dentro de nós, una connosco, inseparável do resto do nosso ser. Estou aqui, mas já não estou aqui. O meu corpo permanece na sombra verde do parque, sentado na relva, com as crianças a brincar e a rir ao meu redor, mas a mente está sozinha. É um isolamento que o cérebro cria, uma postura de introspecção e passividade, como algo dentro de mim buscasse uma imobilidade ancestral. Como se eu procurasse aquele momento original em que tudo é solidão, em que não há pressões nem influências, nem coisas más nem boas. O momento em que as cinzas que restam da chama da vida se elevam, e a morte do passado acontece. Nessa altura começa uma viagem infinita pelo desconhecido e, na pureza do incomensurável, nasce a liberdade.

Wednesday 7 July 2010

A cor da saudade


Praia de Bogatell, Barcelona. Julho de 2010. Fotografia de K.



Não me tinha apercebido de quanta falta me fazes até que te vi a noite passada entre as brumas de um sonho, até que a música que ouvia esta manhã me recordava de ti. Não me tinha apercebido de como as tuas palavras são ternas e verdadeiras, e ecoam dentro de mim, até que me lembrei da tua voz luminosa, como um sol sobre a minha sombra. Não sabia que alguém se podia sentir assim, quando tu e eu somos só nomes, imagens e vozes. A cor da saudade é sépia. Não me tinha apercebido que gostava mesmo que estivesses aqui. Não, não me tinha apercebido, mas é assim.

Tuesday 22 June 2010

Um dia, uma manhã assim...

O céu azul de Barcelona visto do terraço da piscina do Hotel Oom, Agosto de 2006. Fotografia de K.



Ver-te-ei viver, e tu ver-me-às distraído com as recordações que irei guardando de ti. Nesse sítio tranquilo, onde descansa o amor, e onde seremos mais vivos do que alguma vez fomos noutra época. À nossa maneira havemos de nos olhar, sem segredos, quotidianamente solícitos, expectantes de nós, com alguma palavra perdida para todos os outros, que serão como que um distante passado. Não pensarei nunca que já não me queres, apesar do tanto que dá que pensar o coração, e verei sempre esse momento em que viras o rosto para mim. Esse próprio momento virará o rosto para nos ver, para nos recordar mais tarde, quando o Tempo já não tiver idade. Quando pensares que és feliz, ou quase feliz, saberás que nunca ninguém manteve tão viva a tua sombra, tão presente o teu aroma como eu. E então, nesse preciso momento, no céu avistarás uma manhã de esperanças que ninguém poderia jamais expressar.

Thursday 27 May 2010

Como uma tatuagem

Paula’s Darksun. Fotografia de K.



Para a Paula


Como uma tatuagem desbotada, fui-me apagando da tua pele, e as minhas últimas carícias desapareceram de ti, descoloradas a cada dia que passava. Disseste-me que foi a ilusão da véspera de um feriado, disseste-me que foi o tom daquela luz que iludia os sentidos, eu disse que foi a poesia nocturna das ruelas do Bairro Gótico, pensámos que num segundo de descuido os nossos corações acabariam por unir-se. Algo ficou abandonado nessa hora sem retorno, uma dor mastigada, uma paixão acessória que já não tem magia ao recordar. As noites foram passando, na última tu deixaste as persianas do teu quarto abertas, esperando o conforto da madrugada ou o passear do resplendor da luz na tua pele. Noite nenhuma regressa do lugar onde se esconde o tempo, nem nenhuma paixão se pode mascarar de amor. Enquanto o sol subia no horizonte, esvaneci-me em ti, desapareceste de mim.

Saturday 8 May 2010

Sonhos

Port Olimpic, Barcelona, Abril de 2009. Fotografia de K.


Passava já das nove e meia quando a Teresa entrou no restaurante onde tínhamos combinado jantar no dia anterior. Tinha-me entretido nos últimos trinta minutos a apagar Marlboros no estilizado cinzeiro prateado. A Teresa estava discretamente maquilhada , trazia um vestido escuro de algodão e saltos altos. Pediu-me desculpa pelo atraso pois estivera toda a tarde ultimando os preparativos para a viagem. Dentro de poucos dias ela partiria para o sudeste asiático e este jantar seria o nosso último em Barcelona, certamente por um longo período de tempo. O seu pai fizera parte do corpo consular e tinha falecido há alguns meses. O precoce casamento da Teresa tinha também chegado a um fim recentemente, e o futuro iria ser em breve encetado numa longínqua metrópole a meio mundo de distância. O jantar foi excelente, e a noite estava agradável para a época. Falamos sobre temas triviais, rindo e recordando as peripécias que levaram a que nos conhecêssemos. Mas essa é uma outra história.


Quando, após o café, nos trouxeram os copos de Jameson, a Teresa olhou-me nos olhos por uns segundos, e baixando-os, disse-me: “O meu casamento acabou porque o meu marido não me amava a mim, mas sim um ideal que fizera de mim. Uma imagem de acordo com os seus desejos e projectada à força em mim, um fantasma da sua fantasia. Estava presa no seu sonho e eu não quero sonhar os sonhos de quem quer que seja, quero sonhar apenas os meus. E quero viver todos os meus sonhos”. Não falava com emoção, antes com uma calma ponderada e metódica que a caracteriza. Discorreu sobre o seu novo emprego e o seu novo país, o que me fez pensar em como se torna cada vez mais estreito este mundo em que vivemos. Até que lhe perguntei se, nos sonhos que sonhava para si, apenas tinha como planos o emprego e o vasto mundo. A Teresa olhou-me de novo longamente, fazendo girar o seu whisky no copo, sem deixar revelar qualquer tipo de emoção, e depois disse: “Posso esperar. Ainda sou jovem e o mundo é grande. Posso fazer o meu trabalho sobriamente, esperando por aquilo que me há-de acontecer na devida altura”.


Despedimo-nos com o mar por companhia e, num último relance, vi a luz dos neons iluminar o seu cabelo loiro. Durante um longo tempo fiquei a observar a praia deserta e as tímidas estrelas que as luzes da metrópole deixavam entrever-se no céu. Não conseguia apagar a Teresa do pensamento, imaginava-a à espera daquilo que haveria de lhe acontecer na devida altura, como se isso fosse um facto garantido. A expressão vita brevis aflorou os meus lábios... a vida é breve, e os sonhos são apenas sonhos.


Friday 5 February 2010

Luz de Janeiro

Barcelona, Janeiro de 2010. Fotografia de S.J.


Como o primeiro cigarro da noite, como os primeiros abraços, encontrámo-nos naquela festa logo no início. Tinhas o olhar sonhador e um cotovelo preguiçoso apoiado no balcão do bar. Ocupávamos aquele espaço com vontade de sair do centro da festa, das luzes brilhantes e das conversas vazias. Ali bebíamos tranquilamente, olhávamo-nos e deixávamos que a penumbra, a música e o suave desejo de um regresso juntos nos rodeassem. Tinha passado muito tempo até a oportunidade se materializar, mas sabíamos que não escaparia mais. Mais tarde saímos, não eram ainda as altas horas da madrugada, a noite não atingira o pico do seu breu. As ruas pareciam cenários de fantasia decorados especialmente para uma noite de Janeiro onde o amor vem dar um invernal passeio. As nossas sombras fugitivas cruzavam rápido as vielas, negras como um par de gatos vadios, as golas dos casacos subidas, o vapor da respiração suspenso no ar. Silhuetas sem voz, sombras que foram ganhando forma à medida que nos abraçávamos na noite gélida, e íamos construindo esta história que somos hoje. A tua casa naquele prédio tão antigo parecia um castelo sombrio cheio de mistérios, mas iluminou-se quando entrámos e aquela janela que não fechava bem não deixou entrar o frio nessa noite. O quarto estava cheio da dança de luz e sombras, um espectáculo que as persianas tantas vezes nos roubam, e ali estivémos até a madrugada trazer os primeiros bocejos da cidade. Lá fora o silêncio ia-se rompendo pouco a pouco, os sons da vida irrompiam de igual modo que os raios de sol no já morto breu da noite anterior. Eu não tinha dormido nada, ficara acordado a ouvir-te sonhar, a ver a dança nocturna das coisas. Quando me levantei na quietude desse Sábado, um sorriso tranquilo brilhava nos meus lábios.

Wednesday 13 January 2010

A solidão do dia


Barcelona, Janeiro de 2010. Fotografia de A.C.

O céu invernal tem contornos de flores de gelo. A neve acumula-se nas montanhas mas resiste com teimosia a descer a Barcelona. Nestes dias a alba parece elevar-se no ar levada pelas gaivotas da praia, como uma canção levada pelas estrelas. Janeiro demora-se no horizonte, desliza sobre a gélida e tranquila água do Mediterrânico e pede-nos paciência. Demorará a passar este Inverno, com o seu leque de cores espessas, um longo tecido escuro bordado pelas mãos da noite. Está tanto frio aqui na praia. Ao meu lado, sob o grosso cachecol de lã, a Anna suspira pela próxima Primavera, pela suavidade da brisa marítima. Alguns pescadores passam pelo areal, por vezes caminhando devagar e com um certo descuido de profeta. O sol frio aparece pouco a pouco, e eu aprecio com vagar a beleza das cores que vão mudando. Pertenço a este silêncio do canto onde o temporal deixou aparecer alguma beleza, a este território onde a solidão faz passar o dia com as suas tristes aves ocultas.

Tuesday 15 December 2009

Bon Nadal

Barcelona, Dezembro de 2009. Fotografia de K.


Faz frio, faz tanto frio. Parecia que este ano ele não chegaria, mas aqui está, um monstro de escuridão e vento que varre toda a cidade. Caminho sozinho pela Rambla para chegar ao bar onde tinha combinado o meu encontro. Na Rambla há muita gente mas assim que giro para o Gótico apenas as trevas e o vento ficam. Parece que as pessoas vão sendo varridas da rua para me abrir caminho, e estou agora sozinho, rodeado pela noite, com as estrelas a brilhar no céu gelado de Dezembro. Caminho em silêncio, as mãos escondidas nos bolsos do casaco e os lábios detrás do cachecol. Se não visse o luar que vai aparecendo entre os cruzamentos das vielas diria que está prestes a nevar. Se pudesse pedir um desejo… Penso que dentro de uns dias já estou em casa dos meus pais de novo, também eles voltam depois de tanto tempo. Estranho como todos acabamos a viver longe das pessoas que vamos conhecemos. As rajadas de vento gelado despertam-me de novo para a realidade e já vejo na esquina a luz e ouço os sons do local onde fará calor e estão aqueles que me esperam aqui. Quando estiver a caminho de casa recordarei apenas estes dias, recordarei apenas todos os dias que foram bons.

Thursday 3 December 2009

O prodígio desta cidade


Barcelona, Dezembro de 2009. Fotografia de K.

São profundas as linhas azuis do céu outonal. Ainda há folhas nas árvores e o frio que finalmente chegou é esbatido pelo calor do sol do meio dia. As verdades passeiam nas ruas em dias assim, deixam as suas palavras de vento suspensas no ar para quem as quiser entender. “Eh, tu, não penses mais nisso. Continua o teu caminho, não voltarás nunca atrás”. O meu pensamento deixa-se levar pela brisa, deixa-se levar pela beleza do dia. “Não esperes nunca, nada vai alguma vez esperar por ti”. É hora do almoço e em breve terei que pegar na bicicleta e voltar ao escritório. Antecipo o gozo da brisa fria de Dezembro, a descer rapidamente a interminável Diagonal. Sim, penso, não há nada que não tenha solução, se não me obcecar com a resposta. São profundas as linhas azuis do céu, no final das avenidas reina um sonho com som de mar e o sol aquece mais do que eu esperava. Monto na bicicleta, viro em direcção à praia e deixo-me levar.

Friday 27 November 2009

Da lembrança


El Rastro, Madrid. Abril de 2002. Fotografia de K.



Nunca sabemos o que vamos encontrar no virar de cada esquina. Uma voz conhecida, um aroma familiar, um rosto inesperado. Ontem ao fim da tarde recebi uma chamada de um número que não conhecia. Atendi só porque não estava demasiado ocupado e a surpresa deve ter-se desenhado na minha cara de uma maneira surpreendente. Nunca estou preparado para estas situações, nem esperava ouvir a voz que me chamou. A voz de um amor antigo, a voz da felicidade das calles de Madrid, a voz da esperança no futuro que nos aguardava em algum sítio. Madrid. Madrid… E ali estava aquela voz, a invadir o meu escritório de Barcelona, a dizer-me coisas que me perguntei a mim mesmo tantas vezes. Quando desliguei pensei bastante, recordei. A saudade é azul meia-noite. É só um nome, uma imagem na memória e um vazio no coração. Bea. Beatriz. Se alguém se tivesse aproximado e me tivesse tocado nesse momento, ter-me-ia desfeito em pedaços.