Friday 26 June 2009

Descansa os teus ossos cansados


Pirinéus franceses, Junho de 2008. Fotografia de V.B.


Uma aranha que tece a sua paciente teia na penumbra. O vôo elástico do gato até à borboleta que esvoaça distraída. A mão que afaga a cabeça do pastor alemão. O odor familiar do café que vem da cozinha, o sabor azul da baunilha. Traços deste dia que me deixam a pensar em viver longe das cidades. Paira no ar o resplendor côncavo dos pinheiros, suspenso numa ressonância de insectos e a água parece acompanhar a música enquanto vai escorrendo pelos recantos de granito. Muito, muito longe daqui vivi uma adolescência silvestre, feita do lume das orquídeas, do pio do mocho e do cálido espaço do bosque. Mas agora já ninguém recorda essas tardes e menos aqui, onde me conheceram já adulto, como se tivesse nascido assim para estas pessoas. Aqui o entardecer inventa um tom encarnado para colorir as pedras cada tarde, uma constelação de pirilampos chama-me de volta à terra e as folhas escarlates das árvores devolvem-me a lucidez dos sentidos. Sorrio e levanto-me de encontro aos que me esperam. Na mesma cadeira senta-se agora esse outro que já fui, vindo do fundo florestal do dia, regressado à vida pela evocação da natureza, descansando os seus ossos cansados até voltar à recordação de onde saiu.

Thursday 18 June 2009

Entre tu e eu


Bairro Gótico, Barcelona, Junho de 2009. Fotografia de K.


Entre tu e eu a distância vai-se esbatendo e enredamo-nos nos nossos sonhos, sonhados numa tarde de Junho. Buscamos uma vida dentro de nós, entre nós, uma procura que vai diminuindo à medida que nos aproximamos. Vivo para ver-te, sentir-te e ser o traço que desenhe o dia que esperavas. Depressa, vem, espero-te no labirinto das ruas antigas onde o sol brilha como ouro nas paredes de pedra, nas plantas das varandas, nas silhuetas da gente que passa. Segue a luz, vai até ela, passa pelas inúmeras pessoas que preenchem o espaço que nos separa. Estarei aí, em alguma pequena esplanada ou na soleira da porta de um bar, onde se esperam os que se querem. E em breve estarão os nossos nomes revelados, criados uma vez mais nos nossos lábios, como as primeiras ondas do Verão, que nos chamam mar adentro. Entre tu e eu há sombras coloridas que nos cantam um mantra de carpe diem, no fundo a simples melodia de uma cerveja ao fim da tarde. Procurámos dias como este e já estão aqui, espero-te, vem, segue o rastro do que sinto por ti e encontrar-nos-emos no fogo dourado de um entardecer de Verão.

Wednesday 10 June 2009

Véspera de Santo António


Sofia, algures entre Porto e Lisboa, Junho de 2000. Fotografia de K.



Foi na véspera de Santo António, há quase uma década. Era segunda-feira e viajava de comboio desde o Porto com a Sofia. Voltávamos para a noite mais bonita de Lisboa e durante a viagem ríamos e brincávamos, e eu tirava fotografias das nossas tolices. No pequeno apartamento onde vivia estive a ver os efeitos da luz do fim de tarde, e a ouvir o vento suave que cantava nas janelas enquanto esperava a Sofia para sairmos. Aquele entardecer parecia ter rastos de eternidade, de uma esperança que parecia nascer da força com que a vida latia. Apoiado na janela, ouvia os rádios acesos em casas da vizinhança, as vozes que acompanhavam os fados que iam tocando. A magia da ilusão desta noite pairava já no ar, eram visíveis os segredos por desvendar na cara das pessoas que passavam em baixo na rua. Uns dias antes tinham-me dito que aos vinte e cinco anos tudo era possível. Ouvia a Sofia murmurar no quarto uma canção antiga e senti-me o homem mais afortunado do planeta. Não havia nada tão forte como essa voz, a voz de uma alma numa música longínqua, nada tão forte como o seu doce nome de mulher. Sim, a esperança passeava por Lisboa, e quando ela estava presente nada podia ficar escondido, nem esquecido. Foi na véspera de Santo António e a noite estrelada dos nossos vinte e cinco anos ainda estava por chegar.

Friday 5 June 2009

Los viernes al sol


Port de Barcelona, Junho de 2009. Fotografia de L.M.


Queria partilhar contigo tudo o que via, quando fui surpreendido pelo crepúsculo que beijou num repente o porto e me deixou em silêncio. As embarcações ao longe balançavam-se nas ondas do entardecer, com a cadência do vai e vem de quem encontra no sono a paz que procurava. Senti o abraço daquela tarde, uma resposta terrena às consultas ao infinito e às buscas infrutíferas de um caminho recto até à luz, como se o crepúsculo simbolizasse um começo e não um final. Abracei-te porque sabia que naquele momento sentias o mesmo que eu. O porto enchia-se de silêncio e a brisa acariciava-nos a pele e os cabelos, sensível como a mão de uma mulher. Ali, sentado na plataforma de madeira, contigo ao meu lado, compreendi que tudo o via sempre tinha estado ali. A melodia das ondas e o sopro crepuscular, o encontro do mar com a terra, esse abraço que tantas gerações terão sentido nessa mesma hora do dia. Um vai e vem entre o mundo que eu conhecia e o outro que era de todos, de todos os que havíamos vivido algum momento naquele canto do Mediterrânico, e comprendi então que estávamos na ponte entre dois mundos.