Thursday 26 March 2009

Da tristeza das mães

Mulher esperando. Barcelona, Março de 2009. Fotografia de K.



Para o Filipe e a sua mãe, a Dona Glória

Há mães que são parecidas com a alegria, da mesma forma que se parecem com o silêncio algumas mulheres tristes. Há mulheres que se confundem ao longe com fotografias antigas, as roupas e as rugas como espelhos de um tempo que já passou. Mães que o foram há já muito tempo e o são ainda, sê-lo-ão sempre, perseguindo por caminhos sem retorno o fantasma do que um dia foi a adolescência dos seus filhos. Há mulheres que lutam por antigos sonhos que floresceram no jardim da infância que geraram, tentando resgatar quem nunca aprendeu as regras ou desistiu do jogo até antes delas. Há mães que levam estampada na cara a tristeza do que a vida levou e não trará de volta. Na sua clara ternura sabem que tudo o que sabem não tem importância nenhuma e não há forma de iludir essa distância. A distância é outra forma de dizer que os olhos ficaram para trás.

Monday 16 March 2009

Oração por um anjo caído


Barcelona, Primavera de 2009. Fotografia de K.


Barcelona é tão bonita. Olha como o entardecer de Março pousa suavemente sobre a cidade. Vê como a Primavera volta passo a passo aos sítios que foram seus, e a brisa da tarde beija as cortinas e as plantas das casas no bairro do Born. A tua vida tem estado feita de noites, de lágrimas e de estrelas, de luas frias e silenciosas. Deixaste que os teus olhos se acostumassem às ruas escuras, à penumbra dos bares, às luzes de neon e ao fumo azulado, como se fosses um anjo caído. Ouve-me, eu vim da tarde luminosa e asseguro-te que chegou a Primavera. Fecha as portas do teu armário e deixa que a tua roupa negra, os teus sombrios pressentimentos, as tuas máscaras de amargura caiam no esquecimento. Vai à varanda da tua sala, olha para os céus diáfanos, ouve o ritmo musical da vida nas ruas e procura aí a tua esperança. Barcelona é tão bonita. Estou contigo na varanda e vejo o mesmo que tu, sei que a esperança sempre esteve aí, nas ruas de Barcelona. Escondida e em silêncio como uma criança que se esconde, à espreita e ansiosa por ser descoberta.

Monday 9 March 2009

Hoje liguei para o escritório e disse que não ia trabalhar

Bairro de Sants, Barcelona. Março de 2009. Fotografia de K.


A cidade está desconcertada sob o sol resplendoroso que rareou neste Inverno tão duro. O teu corpo brilha na minha lembrança como se tu existisses desde sempre, como se existisses e te negasses a ser apenas a amarga ilusão de chuva no deserto. Cheira a Primavera esse beijo húmido que percorre a curva dos meus lábios. É a tua boca a desenhar no meu corpo os traços da suave ternura que ilumina a cidade lá fora. O mar imenso dos teus olhos percorre os rios verdes dos meus, e o teu corpo é uma planície de mistérios que ganha terreno à minha selva de silêncios. Sigilosa, avanças à espreita, preenchendo o espaço entre as nossas profundas solidões. Não ofereço resistência à tua boca felina, que penetra imperturbável na armadilha segura e letal da memória.

Monday 2 March 2009

Num pátio de luz


Pátio no Raval, Barcelona. Março de 2009. Fotografia de K.


Na claridade da manhã deste sábado já primaveril, na calma de um dos muitos pátios escondidos do Raval, as crianças confraternizam-se com a alegria de voltar a brincar nas ruas. O sol aparece de trás das nuvens e incide levemente sobre elas, faz com que novas cores apareçam nas suas faces saudáveis e sorridentes. Fecho o livro que estou a ler e olho-as com mais atenção. Então vejo que estão não só a brincar mas também a treinar com umas fitas circenses. Um homem jovem acompanha o pequeno grupo e treina também, enquanto vai dando conselhos a todos, em particular à rapariga mais velha do grupo. O vento afaga-lhes os cabelos com a sua mão invisível e o sol, vencido pela sua timidez, volta a esconder-se atrás das nuvens brancas. Um novo grupo de crianças chega ao pátio e junta-se às brincadeiras. As meninas cantam, e movem-se quase em sintonia. Não entendo o que cantam, mas são cantigas simples, de sentido insondável, acompanhadas de gestos estudados. Os rapazes, como sempre, correm anarquicamente atrás uns dos outros e travam lutas imaginárias com as fitas coloridas, como se entre eles tecessem uma tela de cores. A monitora que chegou com o segundo grupo de crianças conversa silenciosamente com o homem jovem, que sorri e tem estampado na cara o quanto quer aquela mulher. Recordo como eram as minhas brincadeiras no recreio, no Porto. Os mesmos risos, a mesma alegria. Não são só mil e trezentos kilómetros de distância, é um universo paralelo que já só existe dentro de mim, na recordação daquele ser pequenino que fui e dos amigos e amigas que cresceram comigo. O sol volta a brilhar e as crianças gritam entusiasmadas o amor espontâneo à vida, a vida que vai chegando despercebida e breve. Também quero ter uma criança assim, um dia. Sorridente, feliz, a brincar na rua sob o sol primaveril. Os dois monitores viram-se para o grupo, em silêncio, e olham as crianças contemplativamente, com um sorriso sonhador nos lábios tristes.