Tuesday 24 February 2009

Viajantes

Estació d'Autobusos Barcelona Nord, Setembro de 2006. Fotografia de K.


Os pobres também viajam. Na estação de autocarros vejo-os caminhar lentamente, levantando o pescoço como gansos para ler os letreiros informativos. O seu olhar é o de quem teme perder alguma coisa, a mala que tem a cor do frio num dia sem sonhos e guarda apenas uma muda de roupa, a sanduíche de mortadela no fundo da mochila ou o sol do seu antigo subúrbio poeirento, para além dos bairros sociais e dos viadutos. Entre o rumor incompreensível de dezenas de altifalantes e dos motores em ignição movem-se com medo de perder o autocarro, a viagem, como se estes se escondessem na neblina dos horários. Os que dormitam nos bancos velhos da estação acordam assustados, ainda que os pesadelos sejam um privilégio de quem ainda sonha seja o que for. Por outro lado, os que não conseguem dormir ficam a olhar o nada, os caixotes do lixo, as paredes, os tectos bolorentos, como se tivessem sido amortalhados. Nas filas que se vão formando, as pessoas pobres assumem um ar grave, uma expressão de medo, paciência e submissão. E os demais olham-nos de soslaio com um desprezo grotesco, acusando-os nesse olhar da sua condição, do seu odor, da sua presença. Estou sentado no chão a escrever estas palavras e a minha companhia dorme, abatida pelo cansaço de um dia sem dormir. Alguns grupos de jovens bem vestidos olham uma família que passa por eles, numa fila paralela. Como se estes não devessem nunca estar ali, como se não tivessem noção dos inconvenientes que causam aos demais, e menos ainda de como comportar-se em público. Uma rapariga de longos cabelos loiros e jeans novinhos assinala à amiga, com desdém, um homem com feições sul americanas que está parado em frente a elas. Boceja e o seu dedo sujo de nicotina esfrega o olho cansado, que do sonho reteve apenas uma sonolenta remela. Uma mãe amamenta o seu bebé no frio da noite, a boca pequena do ser minúsculo que se esconde no cobertor aproveita cada gota e não parece incomodá-lo o ambiente imparável que o rodeia. Nas plataformas há gente que vai e vem, pessoas que correm ou andam vagarosamente, levam malas ou mochilas, gritam e dizem coisas impertinentes aos que já estão dentro dos autocarros. Outros sussurram palavras misteriosas entre eles, alguns mais idosos contemplam os telemóveis e os computadores portáteis de quem espera como se não soubessem onde estão, e fizessem parte de outra vida. A amiga da rapariga dos cabelos loiros comenta em voz baixa que aquela gente lhe fere a vista, sensível às roupas démodés e cheias de nódoas. Olho as raparigas e penso que, para elas, os pobres não sabem vestir-se, nem sabem viajar, nem sabem viver, talvez não saibam nem como morrer. Apoio a cabeça no ombro da minha companhia adormecida e fecho os olhos. Ainda assim, não sai da minha mente aquela fila de gente. Em qualquer lugar do mundo incomodam, viajantes inconvenientes que ocupam os nossos lugares, mesmo quando vamos sentados e eles de pé.

Friday 20 February 2009

A vida são dois dias?

Carnaval de Sitges, Fevereiro de 2007. Fotografia de M.C.


"Chiquita bacana lá da Martinica
Se veste com uma casca de banana nanica

Não usa vestido, não usa calção
Inverno pra ela é pleno verão
Existencialista com toda razão
Só faz o que manda o seu coração"

Monday 16 February 2009

A tarde de Sábado


Café na Ronda de Sant Antoni, Barcelona. Fevereiro de 2009. Fotografia de K.


Este homem idoso que come sozinho comove-me. Detém-se num ponto longínquo da parede e parece procurar entre as garrafas da prateleira os dias que passaram. Mente à empregada que lhe faz perguntas, certamente que há anos lhe pregunta o mesmo, e as mentiras caem como flocos de neve entre ambos, porque não são mentiras más, apenas fragmentos da dignidade de outrora. O homem tosse, acomoda-se vagarosamente no seu banco e olha na minha direcção. Ao final de uns momentos detém-se em mim e sorri-me tristemente. Um sorriso breve, como alguém que voltasse ao seu passado e visse em vez das mesas do café a casa onde viveu um dia, os móveis e os cadeirões antigos, as folhas mortas dos jornais e o relógio de sala cansado. Este senhor procura algo e não se atreve a pronunciá-lo, olha ao redor do café quase vazio e parece soluçar. E eu fico a olhar para ele, como se também procurasse algo, sem ouvir as palavras que me dirigem. Fico a ver aquele ancião que suspira e sorve, nas trevas da sua tarde de Sábado, a fome da sopa silenciosa.

Wednesday 11 February 2009

A vantagem de saber idiomas

Paseig de Gràcia, Barcelona. Setembro de 2008. Fotografia de V.B.


Hoje tinha vontade de ser feliz, de sair para a rua, de ser eu. Sem a menor suspeita ou raciocínio do que me rodeava, apenas a verdade do corpo que sentia e do sol que o aquecia, e tudo o que tivesse que dizer em qualquer idioma, queria que me saísse tudo. Em qualquer idioma, e as palavras surgiam-me e multiplicavam-se no português, no castelhano, no catalão, no francês, no inglês. Hoje não queria buscar a origem das coisas múltiplices e obscuras, nem ponderar objectivamente as renúncias dos quotidianos. Nem lutar lutas que estão perdidas de antemão, nem tentar capturar o ar frio do Inverno, nem esperar quimeras no mármore do sonho.Hoje tinha vontade de falar sem pensar nas palavras, no seu som, na sua espuma de filigrana, brincar com outras vozes destes tempos que me apanharam e esquecer-me de tudo, perder tudo, perder a cabeça.

Friday 6 February 2009

As palavras são a nossa salvação


Igreja de Santa María del Mar, Barcelona. Janeiro de 2009. Fotografia de K.


Percorro as tuas palavras como se o tempo tivesse parado, como se elas fossem um caminho conhecido, um regresso a casa. O fulgor tão azul do céu parece reflecti-las, e o dia transforma-se numa Primavera de luz que chega em pleno Inverno. Tantas vezes li esses vocábulos, percorri o limite do seu significado e da sua voz, entre a alba e o ocaso da distância. Do nada as palavras nascem, ganham vida, pairam nos jogos de sombras, e nelas te encontro, nelas está a tua luz, nelas estás tu.


Para a Joana Jacinto

Monday 2 February 2009

A contraluz

Bairro de Sants, Barcelona. Janeiro de 2009. Fotografia de K.


A claridade da luz na janela ofusca quase tudo. É de manhã e o mundo parece tão pequeno como o reflexo de um lar. Na ardente atmosfera paira o último lume da noite anterior, como se a casa fosse impregnando na minha memória as reminiscências desse ainda fresco passado longínquo. Esse brilho faz com que a manhã entre mais levemente, brinque com as sombras e cure a cegueira da escuridão. Um fio de luz vai semeando a esperança pelo quarto, ainda que dentro do meu coração a esperança pareça algo tão remoto. Vejo-a sentada na cama, como sempre faz depois de acordar, passando as mãos pelo cabelo, despedindo o sereno sorriso que trouxe da realidade sem memória do sonho. Duas solidões ardem no lume que lentamente se esvanece. Uma que, desde os recantos mais escuros do seu interior, pensa em alguém que está longe, no futuro que a cada dia se transforma num passado diferente do imaginado, as sombras de um fogo que se vai apagando na contraluz deste quarto. Outra que sonha com coisas que ama, e no horizonte teima em ver as ilusões que já não virão. Uma canção de embalar sussurrada a contraluz, a luz que se distingue na distância, tentando romper em vão a escuridão da noite imensa.