Thursday 27 May 2010

Como uma tatuagem

Paula’s Darksun. Fotografia de K.



Para a Paula


Como uma tatuagem desbotada, fui-me apagando da tua pele, e as minhas últimas carícias desapareceram de ti, descoloradas a cada dia que passava. Disseste-me que foi a ilusão da véspera de um feriado, disseste-me que foi o tom daquela luz que iludia os sentidos, eu disse que foi a poesia nocturna das ruelas do Bairro Gótico, pensámos que num segundo de descuido os nossos corações acabariam por unir-se. Algo ficou abandonado nessa hora sem retorno, uma dor mastigada, uma paixão acessória que já não tem magia ao recordar. As noites foram passando, na última tu deixaste as persianas do teu quarto abertas, esperando o conforto da madrugada ou o passear do resplendor da luz na tua pele. Noite nenhuma regressa do lugar onde se esconde o tempo, nem nenhuma paixão se pode mascarar de amor. Enquanto o sol subia no horizonte, esvaneci-me em ti, desapareceste de mim.

Saturday 8 May 2010

Sonhos

Port Olimpic, Barcelona, Abril de 2009. Fotografia de K.


Passava já das nove e meia quando a Teresa entrou no restaurante onde tínhamos combinado jantar no dia anterior. Tinha-me entretido nos últimos trinta minutos a apagar Marlboros no estilizado cinzeiro prateado. A Teresa estava discretamente maquilhada , trazia um vestido escuro de algodão e saltos altos. Pediu-me desculpa pelo atraso pois estivera toda a tarde ultimando os preparativos para a viagem. Dentro de poucos dias ela partiria para o sudeste asiático e este jantar seria o nosso último em Barcelona, certamente por um longo período de tempo. O seu pai fizera parte do corpo consular e tinha falecido há alguns meses. O precoce casamento da Teresa tinha também chegado a um fim recentemente, e o futuro iria ser em breve encetado numa longínqua metrópole a meio mundo de distância. O jantar foi excelente, e a noite estava agradável para a época. Falamos sobre temas triviais, rindo e recordando as peripécias que levaram a que nos conhecêssemos. Mas essa é uma outra história.


Quando, após o café, nos trouxeram os copos de Jameson, a Teresa olhou-me nos olhos por uns segundos, e baixando-os, disse-me: “O meu casamento acabou porque o meu marido não me amava a mim, mas sim um ideal que fizera de mim. Uma imagem de acordo com os seus desejos e projectada à força em mim, um fantasma da sua fantasia. Estava presa no seu sonho e eu não quero sonhar os sonhos de quem quer que seja, quero sonhar apenas os meus. E quero viver todos os meus sonhos”. Não falava com emoção, antes com uma calma ponderada e metódica que a caracteriza. Discorreu sobre o seu novo emprego e o seu novo país, o que me fez pensar em como se torna cada vez mais estreito este mundo em que vivemos. Até que lhe perguntei se, nos sonhos que sonhava para si, apenas tinha como planos o emprego e o vasto mundo. A Teresa olhou-me de novo longamente, fazendo girar o seu whisky no copo, sem deixar revelar qualquer tipo de emoção, e depois disse: “Posso esperar. Ainda sou jovem e o mundo é grande. Posso fazer o meu trabalho sobriamente, esperando por aquilo que me há-de acontecer na devida altura”.


Despedimo-nos com o mar por companhia e, num último relance, vi a luz dos neons iluminar o seu cabelo loiro. Durante um longo tempo fiquei a observar a praia deserta e as tímidas estrelas que as luzes da metrópole deixavam entrever-se no céu. Não conseguia apagar a Teresa do pensamento, imaginava-a à espera daquilo que haveria de lhe acontecer na devida altura, como se isso fosse um facto garantido. A expressão vita brevis aflorou os meus lábios... a vida é breve, e os sonhos são apenas sonhos.