Tuesday 15 December 2009

Bon Nadal

Barcelona, Dezembro de 2009. Fotografia de K.


Faz frio, faz tanto frio. Parecia que este ano ele não chegaria, mas aqui está, um monstro de escuridão e vento que varre toda a cidade. Caminho sozinho pela Rambla para chegar ao bar onde tinha combinado o meu encontro. Na Rambla há muita gente mas assim que giro para o Gótico apenas as trevas e o vento ficam. Parece que as pessoas vão sendo varridas da rua para me abrir caminho, e estou agora sozinho, rodeado pela noite, com as estrelas a brilhar no céu gelado de Dezembro. Caminho em silêncio, as mãos escondidas nos bolsos do casaco e os lábios detrás do cachecol. Se não visse o luar que vai aparecendo entre os cruzamentos das vielas diria que está prestes a nevar. Se pudesse pedir um desejo… Penso que dentro de uns dias já estou em casa dos meus pais de novo, também eles voltam depois de tanto tempo. Estranho como todos acabamos a viver longe das pessoas que vamos conhecemos. As rajadas de vento gelado despertam-me de novo para a realidade e já vejo na esquina a luz e ouço os sons do local onde fará calor e estão aqueles que me esperam aqui. Quando estiver a caminho de casa recordarei apenas estes dias, recordarei apenas todos os dias que foram bons.

Thursday 3 December 2009

O prodígio desta cidade


Barcelona, Dezembro de 2009. Fotografia de K.

São profundas as linhas azuis do céu outonal. Ainda há folhas nas árvores e o frio que finalmente chegou é esbatido pelo calor do sol do meio dia. As verdades passeiam nas ruas em dias assim, deixam as suas palavras de vento suspensas no ar para quem as quiser entender. “Eh, tu, não penses mais nisso. Continua o teu caminho, não voltarás nunca atrás”. O meu pensamento deixa-se levar pela brisa, deixa-se levar pela beleza do dia. “Não esperes nunca, nada vai alguma vez esperar por ti”. É hora do almoço e em breve terei que pegar na bicicleta e voltar ao escritório. Antecipo o gozo da brisa fria de Dezembro, a descer rapidamente a interminável Diagonal. Sim, penso, não há nada que não tenha solução, se não me obcecar com a resposta. São profundas as linhas azuis do céu, no final das avenidas reina um sonho com som de mar e o sol aquece mais do que eu esperava. Monto na bicicleta, viro em direcção à praia e deixo-me levar.

Friday 27 November 2009

Da lembrança


El Rastro, Madrid. Abril de 2002. Fotografia de K.



Nunca sabemos o que vamos encontrar no virar de cada esquina. Uma voz conhecida, um aroma familiar, um rosto inesperado. Ontem ao fim da tarde recebi uma chamada de um número que não conhecia. Atendi só porque não estava demasiado ocupado e a surpresa deve ter-se desenhado na minha cara de uma maneira surpreendente. Nunca estou preparado para estas situações, nem esperava ouvir a voz que me chamou. A voz de um amor antigo, a voz da felicidade das calles de Madrid, a voz da esperança no futuro que nos aguardava em algum sítio. Madrid. Madrid… E ali estava aquela voz, a invadir o meu escritório de Barcelona, a dizer-me coisas que me perguntei a mim mesmo tantas vezes. Quando desliguei pensei bastante, recordei. A saudade é azul meia-noite. É só um nome, uma imagem na memória e um vazio no coração. Bea. Beatriz. Se alguém se tivesse aproximado e me tivesse tocado nesse momento, ter-me-ia desfeito em pedaços.

Wednesday 18 November 2009

Fora de época


Parc de Ciutadella, Novembro de 2009. Fotografia de K.


A manhã é mais fresca e maravilhosa que nunca e as pessoas caminham sem pressas pela rua, com roupas leves. Confirmo no calendário do telemóvel a data de hoje: Sábado, catorze de Novembro. O mesmo sol aparece no azul pálido do céu, e o aroma das castanhas assadas vem de longe, como se tentasse recordar os distraídos que o Inverno quase está aqui. Em vão. A luz que invade as ruas faz com que a vida floresça na multidão de corpos que se atraem e se procuram. O calor é perceptível no ar, nas peles, nos risos. Adolescentes percorrem o parque da Ciutadella, jovens incansáveis como nós fomos noutros dias, encontram-se nos relvados, deitam-se ao sol, ao lado das suas bicicletas. Entram no dia de hoje bêbados de desejo, renunciam às abstinências do Inverno e beijam-se sem pudor como deuses que morrerão, sem remédio nem culpa, na cruz dos anos. Hoje em Barcelona tudo parece tomar o seu tempo e e o próprio tempo parece não passar, distraído com as cores dos sonhos que pintam a cidade.


Tuesday 10 November 2009

Prelúdio


Barcelona, Novembro de 2009. Fotografia de K.


Sabia que o estio estava prestes a despedir-se pois não é normal o calor no mês de Novembro, nem mesmo aqui, onde nada é normal. Os dias duravam só o que lhes permitia a noite, e acordava com a primeira luz do amanhecer nos olhos e um pouco de frio no corpo. Mas o cheiro da brisa que entrava pela janela aberta desmentia a época do ano e quase parecia que, como no Verão, o melhor sítio para apreciar a alba era nos telhados. Amanhecia e custava despedir-me dos sonhos tranquilos de sábado, aquela espécie de nuvens de algodão doce da mente que o espreguiçar reduz ao esquecimento. Subi ao telhado e esperei que o sol fosse subindo e tornando nítidos os contornos e cores das coisas. Nada se movia a não ser a brisa. Fiquei em silêncio muito tempo, a ouvir o vento suave que passava, rodeado pelo sussurro dos milhares de folhas das árvores dos jardins dos vizinhos. Só eu e o último silêncio que antecede os dias dos homens. Fiquei ali uma eternidade.

Wednesday 28 October 2009

A língua materna


Porto, Maio 2005. Fotografia de M.G.


Às vezes regresso. Regressos curtos, espaçados entre si, em que aproveito para ouvir e falar a língua em que respiro, a língua que cada vez menos falo. A que chamamos língua materna, esquecida como uma anémona no azul profundo do mar, onde me refugio e sonho nas noites mediterrânicas. A língua em que escrevo, cada vez mais veladamente, cada vez mais uma mistura de diferentes línguas quotidianas. E, no entanto aí está, essa língua que sempre me aparece como as gaivotas que cruzam os céus das cidades costeiras. Nos silêncios revejo as palavras e ouço os fonemas que me levam àquelas pedras cinzentas e ao mar revolto. Não poderão adivinhar a ventura que são para mim estas letras que habitam o ar etéreo, quietas e caprichosas como soturnas vigilantes de um estranho exílio.

Tuesday 20 October 2009

Os telhados de Barcelona


Barcelona, Outubro de 2009. Fotografia de K.


As nuvens de Outubro chegaram para encobrir o magnético céu azul de Verão. Subi ao telhado como noutras vezes, eu que sem saber nunca muito bem porquê, acabo tantos entardeceres nos telhados de casas da cidade condal. A este nunca tinha subido, e sorrio ao descobrir uma nova perspectiva da cidade. Vejo a Sagrada Família lá ao longe, e os sons da cidade parecem muito longínquos, e recordo a primeira vez que escrevi num telhado. Foi na minha casa na calle Rossellón, ao lado de La Pedrera, um texto curto chamado “Se tivéssemos um dia”, há já mais de três anos. Foi uma tarde inesquecível, o sol afundava-se sobre o casario e a Valeria acompanhava-me, fotografando esses momentos enquanto a minha caneta deslizava pelo moleskine. Eu era feliz porque estava ali e escrevia para alguém que estava muito longe, mas ao mesmo tempo muito perto de mim, e sentia que essas palavras eram parte da verdade que levava dentro e era bonito encontrá-las ali, assim, naquele telhado. Agora leio mais do que escrevo nos telhados. E os meus amigos, amigas ou conhecidos a quem peço acesso aos cumes das suas residências olham-me entre boquiabertos e suspeitosos por semelhante requisição. Mas gosto de subir e ficar aqui, a sonhar desperto, pensando que um dia todas as portas se abrirão e então poderei ver tudo, e a surpresa não queimará a minha língua. E então compreenderei o crescimento das plantas, a mudança de pêlo nas crias pequenas, a emancipação das palavras. Encontrarei os sinais da mudança e a queda dos astros no céu será a prova da existência de outros caminhos. Nestes telhados morre em cada entardecer a aparência de um mundo que muda, e um dia no meu olhar nascerá, nua e bela, a essência do seu segredo.

Wednesday 14 October 2009

“Cuando nací, pobreza, me seguiste…”


17 de Outubro é o Dia Mundial para a Erradicação da Pobreza. Barcelona, 2009. Fotografia de K.


Caiu da barriga da sua mãe e arrastou-se sobre a calçada imunda até chegar a um leito de ossos. A vida toda foi um largo pesadelo, sem afectos nem olhares, com o sabor acre do metal e o incómodo dos piolhos como companhia. Cada noite recostava as costas do seu pobre corpo sobre as pedras frias da rua. E assim, cansado de lutar pela sua comida com as ratazanas, deixou-se amontoar entre os mortos.

Monday 5 October 2009

Sinais

Avenida Diagonal, Barcelona, Setembro 2009. Fotografia de K.


Espero um sinal de aviso, eu que tantas vezes escrevi as palavras secretas num papel, as gravei num grão de areia com a força da ilusão. Espero esse teu sinal. Iluminado por um halo de luz, como quando um grande navio cruza a costa diante das poderosas escarpas, ou quando na noite escura se incendeia a tenda de um circo oriundo de um país longínquo. Espero, impávido no entardecer, sob a memória de tribos antigas que percorreram intermináveis jazidas de carvão de ignotas minas, sob o olhar do tigre inclinado que parece apoiar-se nos últimos raios de sol. Espero um aviso, uma voz ou um assobio, entre os rios de imensos canaviais, e a opulência das montanhas verdes perdidas no horizonte. Procuro-te em todos os cantos do mundo, com uma tocha procuro em vão alumiar os vidros embaciados onde pudesses ter deixado o sinal mágico do teu segredo. Posso esperar, como sempre o fiz, sozinho ao entardecer, nestes dias em que não te deixam cruzar o umbral da ponte do meu rio, nem me deixam seguir pelos caminhos as linhas secretas das pedras do teu vale.

Wednesday 23 September 2009

Estrela vespertina


La Mercé, Barcelona, Setembro de 2008. Fotografia de K.


Talvez uma estrela vespertina brilhe sobre ti esta noite. Talvez ao cair, a escuridão recue, espantada pelas luzes que enchem todo o véu nocturno. Nas músicas recordarás outras noites assim, quando hoje era apenas um destino longínquo. E, no entanto, ele chegou. Talvez a promessa do que levas dentro afaste a escuridão mais do que as luzes no céu, talvez entendas porque nada pode ser o mesmo sem ti. A tua viagem é feita só de luz. Talvez o vejas claramente esta noite, no meio das praças e das ruas antigas tão cheias de gente. Talvez o saibas quando dançarmos sob os fogos artificiais que explodem sobre o Bairro Gótico, e eu to diga junto ao ouvido.


Wednesday 9 September 2009

Um segredo na tarde


Boiro, Galiza. Fotografia de P.J.


Deitados na relva verde, olhamos para o céu infinito. Observo as nuvens que se escapam no horizonte, não sei para onde, e a poeira dourada do atardecer que acentua tanto a côr do céu. A tarde é lenta e o rumor do mundo parece uma sinfonia de sons que sai das águas da ria para nos contar sonhos de outros tempos. Ao longe as coisas parecem banhadas por lágrimas de prata, pequenas pérolas brilhantes estendidas sob a glória do sol. E os sons parecem formar palavras na brisa, liberdade, paixão, palavras que passam sobre nós, deitados na relva verde. Ao longe a lua sobe como um fantasma translúcido sobre a terra, e ao falar as nossas palavras fazem já parte daquela sinfonia, as vozes calmas que chamam as coisas pelo seu nome, independentemente do idioma. Espero poder reter na minha memória esta tarde, o momento indefinido em que sinto que o meu coração bate com mais força e já nada precisa de ser dito. A luz do sol saúda os nossos corpos e à nossa volta parece ter sido desvendado um segredo, uma comunhão com tudo o que nos rodeia, o segredo do amor mais antigo: o reencontro com a beleza do mundo. Deitados na relva verde, os nossos olhos inocentes são testemunhas fugazes deste espectáculo, a beleza inalterável do que permanecerá depois de nós. A ria é toda de prata e ouro para além dos altos pinheiros, os nossos corpos juntos s
ão da côr da eternidade, e acima de nós o céu é azul, azul.

Wednesday 19 August 2009

Voltarei para buscar


Tioman Island, Malásia. Fotografia de K.


Um dia, talvez um dia. Numa praia deserta, com o sol dourado a reflectir-se no mar, ressuscitarei. Virei como a Sophia buscar os instantes que não vivi junto do mar. Voltarei pela memória de alguém que ainda viverá dentro de mim, mesmo depois do fim de tudo, mesmo depois das nossas vidas já terem passado. E ela é tão bonita que valerá a pena voltar sempre, para além das dores que enchem o coração, para além do eco miserável do adeus. Sim, valerá a pena viver o que não pudémos viver antes, a calidez das águas tropicais, a magia salgada de um beijo no mar, a voz doce e suave dos momentos sonhados... Ressuscitarei para encontrá-la, para que o seu riso seja a mais bela poesia do mundo e não ter mais que imaginar o que seria se tivéssemos um dia. Virei para abraçá-la sob a noite estrelada e para sentir as ondas quentes do mar abraçar os nossos corpos e saber que em nós está tudo. Sim, um dia ressuscitarei para a eternidade desse momento em que estamos juntos, e toda a vida sorrirá porque nunca mais estaremos separados dela.

Tuesday 4 August 2009

Para os que estaremos sempre lá, por muito longe que estejamos

S. Pedro de Moel ao entardecer, Agosto de 2002. Fotografia de K.

Venham abraçar-me agora, eu nunca parti deste lugar. Nunca vos deixaria sozinhos, com o silêncio do entardecer a cair sobre as tardes quentes e as vossas vozes que ainda ouço na distância. Hoje já não estamos juntos neste lugar, nem as manhãs têm o vosso rosto, nem a brisa sussurra os nossos nomes na maré-baixa. Mas em cada final de dia de Agosto estaremos de novo juntos, e quem quiser poderá encontrar quem fomos na rua da Saudade, na rua dos Naturais ou na rua dos Amigos de S. Pedro de Moel. No aroma dos pinheiros, no perfume do mar salgado ou na suavidade do areal. Outros vivem nos espaços onde passámos, gozam do mar onde nos banhámos, fazem ecoar de novo no espaço os risos. Já não são os nossos. Talvez nunca voltem a ser. Provavelmente não o serão jamais. Mas naquele espaço-tempo ficou uma marca de eternidade, de cumplicidade, de juventude. Uma promessa de regresso mesmo quando o último de nós já não estiver, nem já ninguém contar os dias, nem houver ninguém que caminhe sobre as areias douradas sonhando com os dias de felicidade atlântica. Ainda assim, estaremos sempre lá, meus amigos.

Thursday 23 July 2009

Porque há pessoas assim

Festas de La Mercé. Barcelona, Setembro de 2007. Fotografia de K.



“As únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que não bocejam, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir”


Jack Kerouac, "On the road"

Tuesday 14 July 2009

“O tempo ri-se de nós, e os anos vão passando”

Barcelona, Julho de 2009. Fotografia de V.B.


O tempo ri-se de nós, e os anos vão passando”. Ouço as palavras enquanto observo o cabelo encaracolado da Claudia. Os seus olhos azuis acompanham uma nuvem enorme que passeia no céu, além da grande janela, e deixo a sua frase deslizar nos braços do silêncio, ponderando o seu significado. Os anos vão-se, vão-se de nós, sem termos nenhuma hipótese de descobrir os segredos que cintilam nos olhares. O que se oculta atrás de cada rosto, debaixo de cada pele? Deixamo-nos levar pelos sonhos, pelos ecos perenes da esperança, como um longo abraço que alguma vez demos, quando o tempo era uma vaga abstração e a juventude esculpia palavras na nossa alma. Um arrepio percorre o corpo da Claudia, como se adivinhasse os meus pensamentos, e com a mão afaga lentamente a pele mulata do seu braço. Pouso a minha mão sobre o seu ombro. Os anos vão-se de nós, atravessam-nos e deixam pegadas esbatidas no nosso interior. Por vezes, em Domingos silenciosos, em tardes de mansa contemplação, apercebemo-nos disso, na metáfora de uma nuvem que segue o seu caminho, na desilusão que alguém leva no olhar.

Friday 26 June 2009

Descansa os teus ossos cansados


Pirinéus franceses, Junho de 2008. Fotografia de V.B.


Uma aranha que tece a sua paciente teia na penumbra. O vôo elástico do gato até à borboleta que esvoaça distraída. A mão que afaga a cabeça do pastor alemão. O odor familiar do café que vem da cozinha, o sabor azul da baunilha. Traços deste dia que me deixam a pensar em viver longe das cidades. Paira no ar o resplendor côncavo dos pinheiros, suspenso numa ressonância de insectos e a água parece acompanhar a música enquanto vai escorrendo pelos recantos de granito. Muito, muito longe daqui vivi uma adolescência silvestre, feita do lume das orquídeas, do pio do mocho e do cálido espaço do bosque. Mas agora já ninguém recorda essas tardes e menos aqui, onde me conheceram já adulto, como se tivesse nascido assim para estas pessoas. Aqui o entardecer inventa um tom encarnado para colorir as pedras cada tarde, uma constelação de pirilampos chama-me de volta à terra e as folhas escarlates das árvores devolvem-me a lucidez dos sentidos. Sorrio e levanto-me de encontro aos que me esperam. Na mesma cadeira senta-se agora esse outro que já fui, vindo do fundo florestal do dia, regressado à vida pela evocação da natureza, descansando os seus ossos cansados até voltar à recordação de onde saiu.

Thursday 18 June 2009

Entre tu e eu


Bairro Gótico, Barcelona, Junho de 2009. Fotografia de K.


Entre tu e eu a distância vai-se esbatendo e enredamo-nos nos nossos sonhos, sonhados numa tarde de Junho. Buscamos uma vida dentro de nós, entre nós, uma procura que vai diminuindo à medida que nos aproximamos. Vivo para ver-te, sentir-te e ser o traço que desenhe o dia que esperavas. Depressa, vem, espero-te no labirinto das ruas antigas onde o sol brilha como ouro nas paredes de pedra, nas plantas das varandas, nas silhuetas da gente que passa. Segue a luz, vai até ela, passa pelas inúmeras pessoas que preenchem o espaço que nos separa. Estarei aí, em alguma pequena esplanada ou na soleira da porta de um bar, onde se esperam os que se querem. E em breve estarão os nossos nomes revelados, criados uma vez mais nos nossos lábios, como as primeiras ondas do Verão, que nos chamam mar adentro. Entre tu e eu há sombras coloridas que nos cantam um mantra de carpe diem, no fundo a simples melodia de uma cerveja ao fim da tarde. Procurámos dias como este e já estão aqui, espero-te, vem, segue o rastro do que sinto por ti e encontrar-nos-emos no fogo dourado de um entardecer de Verão.

Wednesday 10 June 2009

Véspera de Santo António


Sofia, algures entre Porto e Lisboa, Junho de 2000. Fotografia de K.



Foi na véspera de Santo António, há quase uma década. Era segunda-feira e viajava de comboio desde o Porto com a Sofia. Voltávamos para a noite mais bonita de Lisboa e durante a viagem ríamos e brincávamos, e eu tirava fotografias das nossas tolices. No pequeno apartamento onde vivia estive a ver os efeitos da luz do fim de tarde, e a ouvir o vento suave que cantava nas janelas enquanto esperava a Sofia para sairmos. Aquele entardecer parecia ter rastos de eternidade, de uma esperança que parecia nascer da força com que a vida latia. Apoiado na janela, ouvia os rádios acesos em casas da vizinhança, as vozes que acompanhavam os fados que iam tocando. A magia da ilusão desta noite pairava já no ar, eram visíveis os segredos por desvendar na cara das pessoas que passavam em baixo na rua. Uns dias antes tinham-me dito que aos vinte e cinco anos tudo era possível. Ouvia a Sofia murmurar no quarto uma canção antiga e senti-me o homem mais afortunado do planeta. Não havia nada tão forte como essa voz, a voz de uma alma numa música longínqua, nada tão forte como o seu doce nome de mulher. Sim, a esperança passeava por Lisboa, e quando ela estava presente nada podia ficar escondido, nem esquecido. Foi na véspera de Santo António e a noite estrelada dos nossos vinte e cinco anos ainda estava por chegar.

Friday 5 June 2009

Los viernes al sol


Port de Barcelona, Junho de 2009. Fotografia de L.M.


Queria partilhar contigo tudo o que via, quando fui surpreendido pelo crepúsculo que beijou num repente o porto e me deixou em silêncio. As embarcações ao longe balançavam-se nas ondas do entardecer, com a cadência do vai e vem de quem encontra no sono a paz que procurava. Senti o abraço daquela tarde, uma resposta terrena às consultas ao infinito e às buscas infrutíferas de um caminho recto até à luz, como se o crepúsculo simbolizasse um começo e não um final. Abracei-te porque sabia que naquele momento sentias o mesmo que eu. O porto enchia-se de silêncio e a brisa acariciava-nos a pele e os cabelos, sensível como a mão de uma mulher. Ali, sentado na plataforma de madeira, contigo ao meu lado, compreendi que tudo o via sempre tinha estado ali. A melodia das ondas e o sopro crepuscular, o encontro do mar com a terra, esse abraço que tantas gerações terão sentido nessa mesma hora do dia. Um vai e vem entre o mundo que eu conhecia e o outro que era de todos, de todos os que havíamos vivido algum momento naquele canto do Mediterrânico, e comprendi então que estávamos na ponte entre dois mundos.

Tuesday 26 May 2009

"Tornarem al Barri Xinès"


Carrer d'en Robador, Barcelona. Fotografia de Jordi O.

Escrever sobre a vida é tão subtil e subjectivo como uma fotografia que capta um dado momento. Há uns dias acompanhei o Jordi a uma exposição de fotografia no CCCB. Eram imagens antigas, dos anos sessenta e setenta, e muitas eram sobre o Bairro do Raval, na altura conhecido como o Bairro Chinês de Barcelona. Falámos muito sobre a Barcelona desses tempos, que eu só conheci através da literatura e de alguns artigos ocasionais. Ele conheceu-a através dos seus irmãos mais velhos e das conversas que tinha com o seu pai, nas mesmas ruas onde passeámos essa noite, passando pelos bares. Fomos pelas ruas antigas e estreitas, pela Ferlandina e pela Joaquin Costa, a noite estava agradável e sentava-se nas calçadas a típica turba multifacetada que habitava ou frequentava esse bairro. O Jordi contava uma história dos tempos de juventude do pai dele, de lutas e facadas na Calle D’en Robador, um pedaço da cidade esquecido por todos, um cenário de fealdade e decadência, hoje cercada por imensos sítios turísticos, hotéis e bares mais ou menos boémios ou de fama duvidosa. Aí parámos para beber um copo num bar sinistro onde meia dúzia de Erasmus tentavam perceber qual era a onda do sítio. A fauna local apurava a última bebida ou o enésimo charro. Saímos em direcção à Rambla, novamente vagueando nas histórias do que lêramos no passado, ou do que alguém que o Jordi conheceu vivera ali. Entrámos no London Bar, um sítio nocturno com carácter de gin tónico e cannabis. A música e a luz não eram as mesmas que eu havia conhecido uma década antes, intocadas então pelos turistas elegantes e leis anti-tabaco. Já não se respirava aquele ambiente freak, nem o fumo pestilento dos cigarros e charros, enrolados naquela música espessa e escura. Partilhámos mais acontecimentos, evocando sítios e pessoas que já não existiam ou eram ficções, fantasmas saídos da genialidade de um Vásquez Montalbán. Tinha sono e a bebida já me pesava na cabeça, e em algum momento deixei de entender as palavras do Jordi, que gesticulava e contava a um empregado algum dos relatos de que nos ríramos antes. Olhei para ele e saíram-me dos lábios palavras sussurradas que ele não podia ouvir: vital é o ciclo da vida / austera e curta a juventude / o dia de ontem é uma derrota / de versos mortos / e palavras e beijos sem retorno.

Monday 18 May 2009

Xeque-Mate


Besalú, Girona, Maio de 2009. Fotografia de K.


A praça tem a solidão dos quadros de Caravaggio, o sossego da memória paira nas arcadas que a circundam. Como uma estreita nuvem no horizonte, o passado parece vagar nas vielas antigas, e nas torres que vigiam a aldeia. Torres, cavalos, rainhas. As nuvens sobre a praça transfiguram-se e assumem formas de coisas de outros tempos, as árvores florescem nas ruas nos seus tons dourados e esverdeados. Sempre o eterno aroma a novela gótica nestas ruelas. Nos festejos medievais de Setembro estive aqui e vi as máscaras, as faixas de mil cores que no fim da festa se amontoavam num canto escuro da madrugada, a triste ressaca de quem sai de cena para sempre. Agora a tarde quente vai caindo em silêncio e as sombras herméticas parecem reclamar o que é seu desde há séculos. A praça abandonada é o campo de batalha entre os contrastes fortes das coisas iluminadas e as que já foram tragadas pela sombra, destacando-se as arcadas, que parecem desenhadas por um pintor flamenco. Algures no emaranhado destas ruas um rei de longa túnica passa e contempla o silencioso espaço onde um dia todos os seus dias foram decapitados.

Tuesday 5 May 2009

O caminhante

Parque Natural de Montseny, Catalunya, Maio de 2009. Fotografia de V.B.


Desconhecia os bosques de Montseny, os tons verde musgo, mas neles vi o sol da manhã tremer como uma música, como um espaço do coração que o tempo reservasse para meditar. Só os rios tinham uma voz azul, para ecoar nos confins do dia. A nossa presença ali parecia sacrílega, seres vestidos de solidão que vinham conhecer a terra, interrompendo o concerto das cigarras a cada uma das horas de calor. Olhava à volta e cheirava a terra húmida depois da chuva da noite, disperso o aroma entre as árvores antigas. Esconderia eu o mundo nos meus sentidos? Deixava para trás, ao passar, os abetos e os pinheiros, quando começava a iluminar-se a luz do estio. O tempo ainda não me detinha, e sentia nas minhas veias o retumbar de uma qualquer tempestade da juventude, um relâmpago na sombra do extenso arvoredo.

Tuesday 28 April 2009

Estes maravilhosos anos

Bairro de Sants, Barcelona, Abril de 2009. Fotografia de K.

Pensei que não voltaria mais a esta casa. Apesar de tudo, acabo por regressar. Os laços que unem as pessoas são misteriosos e já aprendi a não fazer demasiadas perguntas a mim mesmo, e deixar falar a voz do coração. Vejo-a deitada na cama, o olhar perdido nos grãos de luz que entram pela persiana. Pede-me que não a fotografe mais e eu rio-me e digo-lhe sempre que é a última vez, que um dia lhas mostrarei para que se lembre de como era bela e jovem, e de como eu a via. Ela fala sem olhar para mim: Sim, verei as tuas fotografias destes maravilhosos anos. Sento-me na penumbra e desejo esvaziar este quarto de tristeza. Ouço-a respirar devagar e em silêncio, procuro a sua mão na penumbra e aperto-a com força. Não deixes vencer-te pelo desalento. Não deixes de acreditar no futuro, a vida pode sempre mudar. Mesmo quando há tanto tempo um emprego não aparece e a dúvida e o desânimo são quotidianos. Mesmo se te sentes despojada da luz e do sorriso e parece que dás de caras com um futuro que não te pertence. Não deixes passar a vida sem a viver. A vida pode ser extraordinária e eu sei que acreditas, como eu, que as palavras podem mudar o mundo, e as tuas são as que terão que escrever o teu próprio futuro.

Thursday 23 April 2009

Sant Jordi

Dia de Sant Jordi, Abril de 2008, Barcelona. Fotografia de V.B.


O dia de S. Jorge é o dia dos namorados em Barcelona, e a Primavera parece recusar-se a aparecer em todo o seu esplendor até este dia, como se se guardasse para ele ou se fizesse anunciar de outra forma na Catalunya. Este dia é diferente pelas flores que há nos mercados, nas ruas, e pelo aroma que há no ar, em toda a cidade. As rosas recém-abertas são o reflexo dos milhares de sorrisos das mulheres que passeiam nas avenidas, e em dias como hoje os problemas parecem longínquos, e todos temos coragem para enfrentar todos os dragões do mundo.

Wednesday 15 April 2009

A magia da Cidade do Leão

Singapura vista do Merlion Park, Abril de 2009. Fotografia de K.


Há sítios mágicos neste planeta que me deixam sem fôlego e com vontade de viajar sem pausa, de conhecer o mundo onde vivo. Senti-o no Singapore Flyer, uma roda gigante de observação a cento e sessenta e cinco metros do solo, de onde se vê toda a beleza da Marina Bay e, nos dias mais claros, se avista inclusivé a longínqua Indonésia. Senti-o de novo no Merlion Park, um desses sítios onde pensamos que o céu está sempre azul e a estátua de setenta toneladas do Merlion é na verdade o Rei Pescador, saído da lenda para saudar as águas, as árvores e a felicidade etérea de Singapura. Convidaram-me a jantar aí perto, num sítio luxuoso cheio de luzes, embora muito menos belas que as luzes da noite lá fora. Enquanto esperava dirigi-me ao bar e aí vi uma mulher que limpava uma área de acesso, estava ajoelhada e esfregava com um pano o chão. O nosso olhar cruzou-se e eu sorri, ela sorriu, e vi nos seus olhos a beleza e a vergonha. Fiquei também um pouco incómodo pela situação, mas não com vergonha. Sentei-me no bar e continuei a vê-la na sua faena, esfregando o soalho com um pano molhado e renovando a operação com detergente e um balde de água. As mãos pequenas esfregavam e escorriam o pano, faziam o trabalho que têm que fazer, nem rápido nem lento. O cabelo dela era negro como a asa de um pássaro e pensei que também ela quereria estar num lugar feliz, como num sonho, talvez quando terminasse o turno fosse até ao rio, talvez com a família. Não quer dizer que seja alguma espécie de milagre, nem uma sensação enganosa, mas a maneira como senti a luz que irradiava daquela vida foi mágica. A maneira como ela fazia o seu trabalho, tão simples mas duro, a maneira como sorriu quando passei e como continuou a trabalhar, a maneira como pensei nestas palavras cheias da água, árvores e felicidade etérea de Singapura.