
Tuesday, 27 January 2009
O mercado da alquimia

Monday, 19 January 2009
Aparição vespertina

A tarde desce pela rua junto ao porto, com passos lentos, como se se balançasse ao ritmo da tranquilidade invernal do Mediterrâneo. As casas velhas parecem palidecer em tardes assim, a sua maltrapilha melancolia aumenta e são tristes as paredes decadentes e descoradas. Nas janelas junto ao porto brilham as últimas fosforescências do dia, reflexos do mar que evocam olhos mortos que olham a tarde como se recordassem algo muito antigo, vivido há muito tempo. São cinco horas da tarde e há algo no ar, uma doçura que retém as pessoas que passeiam por ali, uma doçura quase carnal, os lábios da tarde. Os rostos dos desconhecidos suavizam-se em tardes assim, faces que nunca vi parecem-me estranhamente amistosas ou familiares. Os rostos das pessoas são feitos de luz, ardem com uma espécie de inocência infantil, ardem contra a escuridão, o esquecimento e as mentiras da noite. Saboreio o momento, tento assimilar o segredo dessa doçura e guardar na recordação o olhar dos homens que passeiam pelo porto. A doçura é como se cada um deles recordasse uma mulher, os seus corpos abraçados, a cabeça no seu ventre, os dedos passeando pelos cabelos. O silêncio dos desconhecidos. O silêncio dos desconhecidos é uma onda de nostalgias e memórias de horas assim que atravessa a rua, são os braços morenos tatuados e os vestidos de verão, os rostos de ternura, as janelas entreabertas das residenciais e as soleiras das portas dos bares com cores de abandono.
Até que a rapariga aparece na varanda, passando entre a cortina amarela. Dirige o olhar ao mar, nada mais do que ao mar, de pé sobre tarde. Fica ali um longo instante, e vê-se a intimidade do seu quarto, atrás dela a cama por fazer. E os rostos arderam com outro fogo, a aparição interrompe aquele silêncio, o presente que reclama o seu protagonismo face à vontade inerte de uma tarde suave que já passou. Foi só um longo instante, mas a aparição ficou a dançar nos olhos dos desconhecidos, e em todos os rostos pareceu-me ver a crença de a terem amado alguma vez, talvez noutra forma, talvez muito antes de que chegasse esta tarde. As luzes do entardecer pareciam vagos reflexos dela.
Até que a rapariga aparece na varanda, passando entre a cortina amarela. Dirige o olhar ao mar, nada mais do que ao mar, de pé sobre tarde. Fica ali um longo instante, e vê-se a intimidade do seu quarto, atrás dela a cama por fazer. E os rostos arderam com outro fogo, a aparição interrompe aquele silêncio, o presente que reclama o seu protagonismo face à vontade inerte de uma tarde suave que já passou. Foi só um longo instante, mas a aparição ficou a dançar nos olhos dos desconhecidos, e em todos os rostos pareceu-me ver a crença de a terem amado alguma vez, talvez noutra forma, talvez muito antes de que chegasse esta tarde. As luzes do entardecer pareciam vagos reflexos dela.
Tuesday, 13 January 2009
todo o amor do mundo não foi suficiente

Bairro de Sants, Barcelona. Janeiro de 2009. Fotografia de K.
todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada.
ficaram só
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.
Wednesday, 7 January 2009
Nascida das sombras

Calle Escudellers, Barcelona, Agosto de 2006. Fotografia de A.C.
Voltei a Barcelona depois da pausa natalícia e encontrei um renovado ambiente festivo. Ondas de pessoas percorriam as ruas e as avenidas como uma massa única de uma mesma maré. As compras de Reis e a invasão de turistas para a comemoração de Ano Novo era absolutamente impressionante, Barcelona era um monstro de energia alternativa e o tempo dançava pelas ruas, pela noite. Deambulei pelos meandros menos óbvios e por rotas desaconselhadas nos guias turísticos, e assim acabei essa tarde no Bairro Gótico, nos becos onde o passado parecia tão vivo e subtil e objectivo, onde se avistava ainda o mistério que pairava nas fotografias antigas dos anos 30. Passei na Calle Escudellers, onde os traficantes negociavam em frente aos frangos assados do restaurante Los Caracoles e à porta do bar Judas, aquela rua era uma encenação do feio, do decadente. Aí vivera anos antes alguém, uma mulher, que foi muito importante para mim quando cheguei a Barcelona, quando eu tinha acabado de deixar uma vida atrás para começar outra. Na sua casa, que ficava em pleno bulício daquela rua sombria, vivemos momentos inesquecíveis em noites de Verão, olhares labirínticos entre os gritos da vizinhança e da turba que passava, a vida que resplandecia no seu rosto e na sua pele, uma mulher frágil no meio dos chulos, das putas e dos paquistaneses que vendiam latas de cerveja a um euro. Pouco faltava para a noite de Reis, e nada na Calle Escudellers parecia ter mudado desde então, e não pude deixar de sorrir ao pensar que foi do meio daquele cenário de caos e decadência que chegou até mim aquela claridade. A claridade das nuvens, das manhãs luminosas, das árvores ao entardecer, da amizade, saiu da babel tenebrosa da Calle Escudellers.
Voltei a Barcelona depois da pausa natalícia e encontrei um renovado ambiente festivo. Ondas de pessoas percorriam as ruas e as avenidas como uma massa única de uma mesma maré. As compras de Reis e a invasão de turistas para a comemoração de Ano Novo era absolutamente impressionante, Barcelona era um monstro de energia alternativa e o tempo dançava pelas ruas, pela noite. Deambulei pelos meandros menos óbvios e por rotas desaconselhadas nos guias turísticos, e assim acabei essa tarde no Bairro Gótico, nos becos onde o passado parecia tão vivo e subtil e objectivo, onde se avistava ainda o mistério que pairava nas fotografias antigas dos anos 30. Passei na Calle Escudellers, onde os traficantes negociavam em frente aos frangos assados do restaurante Los Caracoles e à porta do bar Judas, aquela rua era uma encenação do feio, do decadente. Aí vivera anos antes alguém, uma mulher, que foi muito importante para mim quando cheguei a Barcelona, quando eu tinha acabado de deixar uma vida atrás para começar outra. Na sua casa, que ficava em pleno bulício daquela rua sombria, vivemos momentos inesquecíveis em noites de Verão, olhares labirínticos entre os gritos da vizinhança e da turba que passava, a vida que resplandecia no seu rosto e na sua pele, uma mulher frágil no meio dos chulos, das putas e dos paquistaneses que vendiam latas de cerveja a um euro. Pouco faltava para a noite de Reis, e nada na Calle Escudellers parecia ter mudado desde então, e não pude deixar de sorrir ao pensar que foi do meio daquele cenário de caos e decadência que chegou até mim aquela claridade. A claridade das nuvens, das manhãs luminosas, das árvores ao entardecer, da amizade, saiu da babel tenebrosa da Calle Escudellers.
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