Thursday 14 February 2008

Contextualização

Fotografia de Henri Cartier Bresson, vista aqui. Texto publicado originalmente no El Mau como uma contextualização da fotografia.


Nada tenho que ver com a vida quando caminho sozinho sem ter ninguém que me segure a mão, ninguém que me beije a cara quando choro porque não sei para onde vamos, e pelas esquinas me arrasto com os outros, e o meu reflexo nas vitrinas não é mais que um suspiro fantasmal do outro rapaz que já não existe. Nada tenho que ver com a vida quando percorro a cidade que desconheço, na companhia de outros estranhos com rostos de cinza e passados que já ninguém recorda. A fé há muito que desapareceu, e nada mais resta que o nada que está para vir, anunciado na tristeza incomensurável deste céu cinzento.Nada tenho que ver com a vida quando a vou deixando para trás pelas valas e sarjetas, e desfilo em silêncio nesta caminhada sem fim com os outros fantasmas ambulantes. Nada tenho que ver com esta cidade em ruínas, nem com a ruína que fizeram do meu coração, ainda que seja nesta cidade que se traçou o destino dos nossos dias. Das janelas saem ainda os sinais da tragédia, despojos da miséria que chegou, as roupas esquecidas ainda penduradas, o espanto por todo o lado como uma tripa esventrada. Nas casas não vive ninguém já, e ao entardecer parecem tumbas silenciosas que assistem à nossa marcha. Nelas houve um dia risos, e nelas se encontravam os que se amavam pelas manhas, e eu vivi também um dia numa casa assim. Nada tenho que ver com a vida quando esta me morde o coração a cada passo, e entre as lágrimas que já ninguém limpa do meu rosto, desejo ardentemente que todos pudessem estar vivos, e que tudo pudesse começar de novo.

9 comments:

intruso said...

Há momenos e tempos em que ninguém tem que ver com vida
[não há tempo, cidade ou fé; apenas ruínas... e o caminho só]

belíssimo texto

abraço

Helena Martins said...

*s

susemad said...

Já as tinha lido no El Mau! :)

Rapaz que divagas perdido pelas ruas com pensamentos tão tristes...

Shhh said...

Há experiências gratificantes que nos marcam de tal modo e que desejámos nunca as esquecer. Recordá-las consecutivamente nem sempre nos trará a alegria do passado, mas sim, um estado emergente de nostalgia envolto no presente. Nem é bom, nem é mau. É péssimo.


Gostei do texto
:)

sem-se-ver said...

hoje dia 24 deixei-lhe um daqueles desafios-correntes-entre-blogs no meu.

espero que não o enfade... (também só adere quem quer, não é?)

:)

susemad said...

Como da outra vez achaste piada, desta vez não resisti em lançar-te um desafio lá no tonsdeazul. :)

nikita said...

Rapaz, o que foi que te aconteceu???!
O teu texto está lindo, adoro o que escreves, mas tão triste desta vez...
Espero que no próximo post nos mostres (maravilhosamente) o que a vida tem ainda para te dar de belo e terno e cheio de futuro.

K. said...

O texto é apenas a contextualizaçao de uma fotografia mítica. Foi um desafio, mas sim, apenas se vê tristeza neste fotograma.

Francine Esqueda said...

Descobrir blogs bacanas como o seu é um prazer!! Cada blog que escolho visitar sempre tem algo que me agrada muito... Gosto de praticidade, e visual diferente... Assim como este! Ler coisas interessantes e ver imagens gostosas de admirar! Parabéns!
Abraços