Saturday 5 January 2008

La Boquería

Mercat de La Boquería, Barcelona. Fotografia de K.

Era Sábado de manhã e passeava no Mercado de La Boquería. Um homem de uns cinquenta anos, pelo menos de aparência, caminhava à minha frente. Tinha um ar desalinhado de mendigo, ténis rotos e uma camisola quase desfeita que me chamou a atenção por ter nas costas uns desbotadíssimos Bugs Bunny e Daffy Duck. Caminhávamos a uns metros de distância, entre as bancas de peixe e marisco fresco, frutas, especiarias, carnes. Gosto de mercados em geral, e particularmente da Boquería, mediterrânica, espontânea, verdadeira, sobrevivente da modernidade e da higiene, da caça às bruxas sanitariamente correcta duma Europa que cada vez mais tenta esconder as suas origens. Ia vendo as pessoas que passavam no mercado, enchendo os meus sentidos de cores fortes, de aromas cruzados, ouvia o rumor intenso das vozes que gritavam os pregões, que perguntavam preços, que tocavam nas coisas, que regateavam. Ia assim, envolto num sonho do presente e do passado, entre as pegadas e os rastos do que fomos e do que somos, e via o mendigo que ia à minha frente cumprimentar os donos das bancas do mercado. Via aquele homem arrastar os pés entre o chão sujo e parecia ser habitual dali, um daqueles desafortunados que pedem esmola, carregam cargas ou fazem pequenos favores. Quando passava em frente a uma das bancas de peixe é chamado por uma peixeira. O homem voltou atrás e aproximou-se dela, uma mulher já madura, grande e forte, com um avental todo manchado. Pegou num peixe da vitrine, embrulhou-o em papel de jornal e ofereceu-o discretamente ao mendigo, sem dizer uma palavra. E então o mendigo sorriu o seu sorriso desdentado, acenou com a cabeça e fez um gesto como que de beijar o embrulho. E depois partiu.

Fiquei parado a observar a peixeira, que tinha voltado ao trabalho sem dar mais importância àquilo. Amontoava o gelo picado sob as gambas em exposição e acondicionava as douradas e os rodovalhos. Lembrei-me das peixeiras que tinha visto noutros sítios da minha vida e sempre me deixavam uma impressão inapagável, no mercado do Bolhão, na lota de Matosinhos e de Angeiras, no mercado de Aveiro. Todas pareciam a mesma, ou havia sempre algo comum àquelas mulheres. Não era o avental sujo, o corpo gordito ou as mãos avermelhadas pelo trabalho árduo. Era aquela força e aquela capacidade de agir sob o impulso pessoal da caridade sem esperar aplausos nem nada em troca. Apenas porque sim. Meti as mãos nos bolsos e continuei a andar, e naquele momento desejei apenas que sítios assim, onde sempre encontro mulheres como aquela, não desapareçam nunca.

10 comments:

Caiê said...

Eu também gosto muito de la Boquería, das Ramblas, de peixeiras e de mendigos que tenham gatos!

(e do cheiro a mar que é a minha vida!)

susemad said...

Faz tempo que não oiço o barulho, nem respiro os cheiros dos mercados!
Claro que os mercados aqui no sul, não têm comparação possível, fica sempre a faltar o sotaque.
Uma vez, em miúda, até me perdi num deles. Andava sempre muitos passos atrás da minha mãe a tentar "fotografar" tudo visualmente!

Os gestos simples marcam-nos e é nesses simples gestos que reside toda a sensibilidade. Estas tuas palavras falam disso mesmo e daí trazerem até mim momentos nostálgicos de ternura.
Sim que continuem a existir muitas mulheres e também homens que marquem a diferença, sem esperar nada.
Um abraço e (se já o disse repito novamente) que este novo ano seja para ti um realizar de sonhos!

intruso said...

já passeei num sabado (ou era domingo?) de manhã por esse mercado
[encontrei gente]
{comprei cerejas}
...

bom post......
:)

LuisElMau said...

Olá K.
Temos uma amiga em comum e é do blog azul que venho.
Gosto da tua escrita, parabéns.
Deixo aqui um desafio, aparece no meu blog e entra na brincadeira que está a decorrer por lá, comecei aquilo um pouco do nada e sem saber para quê, mas está a correr mesmo bem.
A brincadeira consiste em contextualizar uma imagem.

Anonymous said...

"sanitariamente correcta", ora nem mais. Há um mercado cá em Oxford, coberto, não tão asseado quanto se esperaria de uma Inglaterra obcecada com o Health and Safety, mas muito menos vibrante que um mercado latino, como os conheço. Engana, levemente, a saudade.
Descrição sublime de uma peixeira que são muitas.

Monalisa said...

Venho doutro blog onde se fala de uma mulher,velha, cega, no rossio, que toca sem, parar uma campaínha para chamar a atenção de quem passa para o seu pedido de esmola - ninguém a vê ou ouve. Sabe-me bem ler agora este episódio para me recordar que a vida não tem só um lado negro e que não estamos irremediavelmente anestesiados e indiferentes ao próximo. Beijo

belula said...

Ummm....el mercado de la boquería....¡todo un paraíso gastronómico!. Una enamorada de barcelona y el modernismo.

e-Team said...

Vale a pena termos dias assim!

Anonymous said...

Tirei-a lá no dia 2 de Fevereiro, antes do almoço:

http://i93.photobucket.com/albums/l78/martaalexandraduarte/DSC00819.jpg

Beijinho.

Anonymous said...

No meu pc não aparece o link completo...

será: martaalexandraduarte/DSC00819.jpg