Tuesday, 18 November 2008

Un hombre llamado Flor de Otoño*

Parc Cervantes, Barcelona. Novembro de 2008. Fotografia de K.

Barcelona é azul e castanha, blau i marró, as cores misturam-se num abraço sentido e o sol ameno dá uma sensação de paz única. Uma tarde de Novembro perfeita, penso, e estendo-me como um gato ao sol, confirmando que o meu sorriso não desapareceu, antes permanece indelével como as marcas do Outono. Vem-me à recordação alguém que está longe, e deixo-me ficar assim, de olhos fechados, para que essa imagem não se desvaneça. Em Barcelona os sonhos parecem mais reais, apesar de já ter aprendido qual é a minha idade, e quais as minhas limitações. Quando abrir os olhos quero ver com outra ilusão a superfície plana do mundo sem sentido, quero que as cores da tarde pintem as vidas sem glória, as histórias sem paixão. Quero que as folhas douradas e as flores outonais enalteçam a beleza do que vi sem abrir os olhos. E quando chegar o entardecer, já sem despedidas, no murmúrio insone das árvores, terás cruzado o céu até mim apenas com as tuas palabras.


* título de um filme de Pedro Olea

Monday, 10 November 2008

Il trionfo della morte


Il trionfo della morte, de Brueghel o Velho, 1562. Visto no Museo del Prado, Madrid.

O céu plúmbeo e o vento faziam de Barcelona uma cidade triste e desolada, e nas ruas geladas e invernais avenidas poucos se aventuravam naquela tarde de Novembro de dois mil e seis. Andava pelo Bairro Gótico, escondido nas vielas e abrigando-me junto às paredes de pedra antiga, sem uma direcção fixa. Pareceu-me ver uma pessoa conhecida, que caminhava uns metros adiante de mim, e prestei atenção à sua maneira de andar, de vestir, à maneira como o vento dançava no seu cabelo. E então soube. Assim, de repente. Era a Daniela. E no entanto, não podia ser porque já não estava entre nós, e tinham passado já tantos anos. Caminhava à minha frente, não lhe via a cara, mas era ela. Era ela. Ouvia o eco dos seus passos nas paredes seculares, e continuava a caminhar, até entrar numa pequena praça, onde a perdi. Então numa esquina vi uma placa com o nome do local, Sant Felip Neri, e os meus olhos marejaram-se de lágrimas. Mas ela tinha desaparecido, e em frente estava a igreja do Oratori de Sant Felip Neri.

Naquela manhã olhava o seu cabelo negro tão suave, que aquele vento frio de uma manhã de Janeiro na sierra de Madrid fazia ondular como uma bandeira. Estávamos ao pé da montanha, e as rochas pareciam estranhamente nuas no meio de um universo branco de neve. O sol era radiante e o frio vivíssimo, tínhamos subido ali para um evento benéfico da Ordem de Sant Felip, que a Daniela ajudava. Falava dos maciços rochosos, de como se formavam no fundo de mares antigos, pela acumulação de conchas e fósseis animais ao largo de milénios. Eu nunca tinha pensado nisso, e enquanto sentia o seu perfume, contemplava maravilhado aqueles colossos que sentia tão sólidos sob os meus pés, nada mais do que pó deixado por milhões de vidas, e pensava Il trionfo della morte. Mas ali, na desolada montanha, o perfume dela era o triunfo da vida, a sua camisola de lã ajustava-se ao seu corpo e o vento movia os seus cabelos como uma bandeira de glória e os seus olhos negros, meio risonhos meio melancólicos, faziam-me sentir vivo como nada antes o tinha feito.

Quantos anos passaram desde essa manhã? Sete, oito? A juventude escapa-se-nos, num momento damo-nos conta que chegamos a uma etapa da vida em que já não somos quem fomos. E apesar de tudo... apesar de tudo o meu coração, quando volto a vê-la nas minhas recordações ou nos meus sonhos, late com a mesma intensidade de antes. Antes, quando as suas palavras me deixavam sem respiração, e as mãos me tremiam e sentia fogo no peito. Este é o meu segredo. Não o contei nunca a ninguém, nunca contei que a vi um dia, guiando-me em silêncio até à igreja do Oratori de Sant Felip Neri. Guardei isto só para mim, a mais ninguém importa. A quem iria importar a minha história?

Sunday, 2 November 2008

La relógica invisible

Metro de Barcelona, Outubro de 2008. Fotografia de K.



Chovia em Barcelona, a tarde era vazia e cinzenta e as ruas estavam desertas. A chuva fustigava a cidade desde manhã e quando entrei na estação de metro completamente empapado tive que dar uma corrida para conseguir entrar na carruagem que estava parada na plataforma de embarque. Na carruagem não ia muita gente e aproveitei para sentar-me e evitar pensar em todas as coisas que me ocupavam o pensamento, tão vazias e cinzentas como a própria tarde. As ausências, as distâncias, os clarões da memória que não conseguia justificar nem com o meu próprio egoísmo, indiferença ou cansaço. Tirei o casaco encharcado e reparei numa rapariga que se aproximava, falando em voz baixa com os passageiros, estendendo-lhes algum papel que, um após outro, iam recusando. Outros nem a olhavam. Deixava alguns papeis nos assentos vazios. Era pequena, magra e tinha ar de menina, teria uns vinte e cinco anos. Vestia de castanho escuro, como o seu cabelo curto e quando se me acercou esboçou um sorriso tímido que contrastava com os seus tristes olhos escuros. “Queres comprar um livrito com as minhas poesias?”, perguntou-me. Fiquei um pouco surpreendido mas disse sim, e estendi-lhe o euro que ela pedia em troca. “La relógica invisible”, chamava-se. Eram oito folhas agrafadas, uma edição manual, ilustrada com simples desenhos, quase infantis. Na capa li o nome dela: Serena Urdiales. Fui folheando o pequeno manuscrito e li um poema ao acaso, chamava-se “Las alas del deseo”. “Un ángel diciendo / que quiere tener peso, conocer / los colores aromas y sabores, / encontrar dónde / comienza el tiempo y termina / el espacio. Encontrar, / no la estación donde el tren / se detiene, sino / la estación / donde la estación se detiene.” Quando olhei, vi-a voltar para trás, recolhia os exemplares que deixara nos assentos que não estavam ocupados, talvez com a esperança que alguém mudasse de opinião. “Só me compraste tu”, disse-me enquanto recolhia os livritos ao meu lado. “És tu quem escreve?”, pergunto. “Sim, sou a Serena”, respondeu em voz baixa, “mas dá igual, quase ninguém compra. As pessoas já não gostam de palavras”. “Não deixes de escrever nunca”, digo-lhe enquanto os seus olhos tristes me fitavam. No seu rosto passou uma sombra de melancolia, e a sua mão pequena fez um gesto de indiferença, como se afastasse a ilusão das horas sem retorno. “Seria bom, se pudesse começar tudo de novo. Noutro sítio, onde pudesse escrever as palavras que levo dentro. A vida é decepcionante, não?”. Sim, é decepcionante, Serena, pensei enquanto a vi sair para entrar noutra carruagem.